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Reportagem Especial

Como iniciativas religiosas mudaram histórias no meio rural capixaba

Além dos muros das igrejas, movimentos iniciados por sacerdotes, dentro e fora do Espírito Santo, contribuem com o desenvolvimento da agricultura familiar e ajudam conter o êxodo rural

por Rosimeri Ronquetti

em 17/06/2024 às 5h00

6 min de leitura

Como iniciativas religiosas mudaram histórias no meio rural capixaba

Foto: arquivo Comunidade Palmeiras

Andá com fé eu vou que a fé não costuma faiá”. A música do cantor e compositor baiano, adepto do xangô e do candomblé, Gilberto Gil, exalta a fé e diz que ela está em muitos lugares. Inclusive, diz um trecho da bela canção lançada na década de 1980, “A fé vai onde quer que eu vá”.

No Brasil, assim como em vários países do mundo, após o Concílio Vaticano ll (1962 -1965) iniciou-se uma renovação eclesiástica que abriu as portas da Igreja Católica de Roma para reflexões sobre problemas concretos e diários dos fiéis, e não mais apenas sobre fé e divindade.

Surgem nessa época as Comunidades Eclesiais de Bases (CEBs), fruto do Concílio Vaticano ll. As CEBs, por meio da organização dos leigos, das reflexões acerca do cotidiano, tendo como referência a Bíblia, além do apoio de padres e bispos para a mobilização popular, criaram e/ou apoiaram vários movimentos sociais por todo o país, boa parte deles no meio rural.

No Espírito Santo, de Norte a Sul, é possível encontrar iniciativas que começaram após 1965 e transformaram a realidade dos pequenos produtores rurais. Os exemplos estão na organização de comunidades do campo, produção, educação rural, comercialização e cooperação.

Com o Concílio Vaticano ll, a Igreja teve uma abertura bem maior para participação mais intensa dos leigos em todos os movimentos da igreja e, automaticamente, começou a surgir todo esse processo de associativismo, cooperativismo, entre outras iniciativas diretamente ligadas às várias ações da própria igreja”, explica o padre Honório José de Siqueira.

 

Foto: divulgação Cooabriel

 

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Os ideais do cooperativismo, difundidos pelo então pároco de São Gabriel da Palha, padre Simão Civalero, e pelo padre Alvaro Regazzi, em Itarana, deram origem à Cooperativa Agrária dos Cafeicultores de São Gabriel (Cooabriel), a maior Cooperativa de café conilon do Brasil, e a Cooperativa Agrária dos Cafeicultores de Itarana (Capil), respectivamente.

“A Igreja foi organizadora e motivadora da difusão do cooperativismo na época, sob orientação de uma encíclica papal que incentivava a criação de cooperativas agro como forma de alavancar o progresso e facilitar a vida dos produtores, que em sua maioria eram de pequeno porte”, conta o presidente da cooperativa, Luiz Carlos Bastianello.

 

Fairtrade: para ser bom, tem que ser justo para todos

 

Foto: divulgação Cafesul

O Fairtrade, ou Troca Justa, na tradução literal, ou ainda Comércio Justo, como ficou conhecido, também tem no DNA as mobilizações religiosas. O movimento, que surgiu na Holanda, com jovens católicos vendendo peças de artesanato produzidas por comunidades dos países em desenvolvimento nos bazares organizados pela igreja, chegou ao Brasil e fez do café o grande produto do Comércio Justo brasileiro.

Descontente com a forma que os atravessadores ficavam com os lucros dos produtores de café de uma comunidade indígena no México, 30 anos depois do início do movimento na Europa, o padre Frans Van der Hoff foi um dos pioneiros do Comércio Justo nas Américas. Já no final da década de 1970, o Comércio Justo chegou ao Brasil por iniciativa de ONGs europeias ligadas à igreja que auxiliaram na organização de grupos de trabalhadores rurais.

“O Fairtrade é um modelo de comercialização justa que pauta a sustentabilidade agrícola, a qualidade de vida e o ambiente das famílias dos agricultores. Para isso, tem um conjunto de regras a serem seguidas, como as relacionadas à agricultura familiar, agroecologia, produção orgânica, extrativismo vegetal, artesanato, bem estar animal, sociobiodiversidade e o empreendedorismo comunitário, atividades que priorizam a vida ante a produção”, conta Renato Theodoro, presidente da Cooperativa dos Cafeicultores do Sul do Estado do Espírito Santo (Cafesul), única cooperativa capixaba com certificação Fairtrade, e a única de café conilon certificada no Brasil.

Credenciada desde 2008, a Cafesul passou por um planejamento estratégico e levou dois anos para atender as condicionantes ambientais e sociais que, tanto a cooperativa quanto os cooperados precisaram se adequar. Mas valeu a pena. Muita coisa mudou na Cafesul depois que recebeu o selo.

A cada saca de café vendida no mercado Fairtrade, a entidade credenciada recebe um prêmio social que se reverte em melhorias para a cooperativa e para os cooperados.

“Para nós foi um momento de virada de chave. Com a certificação tivemos mais acesso ao mercado, melhoramos nossa estrutura, realizamos diversos projetos nas áreas social e ambiental. O prêmio ajuda a manter assistência técnica de graça, tanto no manejo quanto na qualidade de café, entre outros serviços aos cooperados. A certificação nos abriu portas no mercado nacional e internacional”, ressalta o presidente.

Luiz Cláudio de Souza, produtor de café conilon especial e tricampeão no Coffee of the Year, e um dos sócios fundadores da Cafesul, fala da experiência de ser cooperado de uma instituição Fairtrade e como o selo ajudou na conquista de tantos prêmios.

“Boa parte do valor do prêmio social que a Cafesul recebe é investido na melhoria da qualidade do café dos cooperados. Portanto, a certificação Fairtrade contribuiu e muito para a minha trajetória com os cafés especiais. Aproveitei a assistência técnica, os cursos, os treinamentos, as parcerias, e assim vieram os resultados ao longo do tempo. O nome Comércio Justo diz tudo, bom para todos”, conta Luiz Cláudio.

Foto: divulgação Cafesul

E quando o produtor diz que todos ganham ele tem razão. Entre os princípios do comércio justo estão questões ambientais que precisam ser respeitadas, caso contrário a certificação não acontece.

Para Luiz Claudio, “sem dúvida, as normas da certificação ajudam a ter uma produção sustentável. Bom para quem produz, pois não utilizamos produtos nocivos à saúde de quem trabalha na lavoura e ao meio ambiente. O consumidor também ganha, pois está consumindo um produto saudável e contribuindo indiretamente para a sustentabilidade da produção”.

Além do prêmio social, os produtores têm acesso a um mercado diferenciado, com melhores preços que o convencional, na hora de comercializar sua produção. O preço mínimo é outro benefício. Caso o mercado esteja abaixo de um valor mínimo estipulado, o associado vai receber sempre aquele valor. Os cooperados têm ainda uma série de vantagens indiretas, por meio de projetos que são feitos nas propriedades, como fossa séptica, caixa seca, recuperação de nascente, entre outros.

Atualmente no Brasil existem 23 organizações filiadas à Associação das Organizações de Produtores Fairtrade do Brasil (BRFAIR), todas compostas por produtores de café e suco de laranja.

 

 

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