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Agroturismo

Italiano não se aposenta nunca

Empreendedores do agroturismo de Venda Nova do Imigrante (ES) não veem a aposentadoria como um ponto final, mas sim como uma vírgula em uma história em constante evolução

por Leandro Fidelis

em 19/11/2023 às 10h47

14 min de leitura

Italiano não se aposenta nunca

Dulce Altoé (51): “A gente já planejou fazer a pousada como uma maneira de ter renda com ela. Mas acho que estando ativo, dá saúde e vontade de estar sempre fazendo algo. Se você para, que motivação tem para viver?”. (*Fotos: Leandro Fidelis/Imagens com direito autoral. Proibido reprodução sem autorização)

*De Venda Nova do Imigrante (ES)

Nas bucólicas montanhas de Venda Nova do Imigrante (ES), a “Capital Nacional do Agroturismo”, onde a tradição italiana se entrelaça com a exuberância da natureza, histórias desafiam o tempo. Em um cenário onde a modalidade de turismo se tornou a epopeia de gerações, vivem famílias que, mesmo superando os desafios do tempo e da sucessão, persistem em transformar a paisagem rural capixaba em um destino marcado por inovações e parcerias. O agroturismo, longe de ser uma atividade destinada ao descanso, revela-se um campo de sonhos prateados, onde a paixão por cultivar a terra e as tradições familiares transcende as fronteiras do envelhecimento.

Nesse mosaico, a Fazenda Carnielli emerge como um exemplo da filosofia de que “italiano não se aposenta” com a produção de queijos, iogurtes, doces, café e embutidos – entre eles o famoso socol. Estima-se que de 70 a 75% da população capixaba seja de origem italiana, e as gerações mais experientes, que há décadas cultivam os campos e moldam o agroturismo, resistem ao repouso merecido da aposentadoria.

Leandro Carnielli (67), um dos três irmãos à frente do empreendimento, compartilha experiências sobre como o trabalho na atividade transcendeu as barreiras do físico para se tornar um empreendimento mais intelectual e estratégico. “O trabalho é até mais puxado agora, participar de eventos, reuniões, feiras, toda hora e realizar contatos, pois as pessoas vêm em busca disso. No atendimento ao turista, é preciso estar junto. Não tem esse negócio de deu dez horas e vou descansar. Você tem que continuar. É parte desse processo que gera, para a comunidade, coisas interessantes”, destaca.

Carnielli enfatiza a transformação contínua do agroturismo em uma atividade enraizada na comunidade e no dinamismo do mercado. Essa narrativa revela a essência multifacetada do setor, onde a paixão e a tradição coexistem harmoniosamente com a necessidade de adaptação e inovação.

O filho caçula, Lorenzo (37), aponta para a necessidade de diálogo e gestão profissional como fundamentais para a transmissão da cultura entre as gerações. “A parte mais importante dentro do processo de gestão empresarial, para defender uma perspectiva, é usar os fundamentos da administração com base em dados. É o primeiro passo. Daí a gente consegue conversar mesmo entre gerações diferentes, cada uma contribuindo para o negócio, somando sempre com muito respeito e dando tempo para as coisas acontecerem. Essa é a receita”, afirma.

No coração dessa saga está o Sítio Altoé da Montanha, a 960m de altitude, onde a tradição de cultivar a terra e servir aos turistas é uma prática que atravessa gerações. A propriedade tem um bistrô e hospedagem com vista para as montanhas de Venda Nova. Além disso, os donos mantém um café colonial às margens da BR-262 onde oferece a famosa pizza de polenta.

Lúcio Sossai Altoé (52), cujas raízes se aprofundam desde a infância na roça, compartilha sua perspectiva sobre o lema “italiano não se aposenta”. Para ele e a mulher, Dulce (51), a aposentadoria não é um ponto final, mas uma vírgula em uma história ainda sendo escrita. “A gente já planejou fazer a pousada como uma maneira de ter renda com ela, mas acho que, estando ativo, dá saúde e vontade de estar sempre fazendo algo. Se você para, que motivação tem para viver?”, questiona Dulce.

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A máxima “italiano não se aposenta” não é apenas uma questão de manter a atividade física, mas também uma fusão sábia entre a experiência acumulada ao longo dos anos e a energia inovadora da juventude. O casal é pai de Pedro (19) e Lara (22). Ele cursa administração no Ifes, enquanto Lara é formada em gastronomia e acaba de voltar de uma temporada de um ano e meio na Itália para aprofundar conhecimentos.

No diálogo entre as gerações, percebe-se uma simbiose onde a experiência do pai encontra ressonância nas ideias frescas dos filhos. “A gente tendo maior afinidade consegue chegar a um bom resultado”, afirma Lúcio. “É muito difícil colocar certas coisas mais tecnológicas na cabeça dele”, brinca Pedro. Essa coexistência de sabedoria tradicional e novos horizontes tecnológicos é um fator vital na sustentação e evolução constante desse setor.

No entanto, esse dinamismo não está isento de desafios. Dulce ressalta a importância do diálogo e respeito nas tomadas de decisões. “A gente tem a mente aberta. Sempre senta, conversa, fica a manhã toda naquele papo, sempre respeitando o que cada um gosta, pensa, não dá para ser autoritário”, destaca. A abordagem colaborativa se torna uma peça fundamental dos negócios, onde a interação entre diferentes gerações não apenas mantém a tradição viva, mas também impulsiona a inovação e a adaptação às demandas em constante mutação do mercado turístico.

A pirâmide etária em Venda Nova, de acordo com o Censo 2022

Em 2022, o total de pessoas com 65 anos ou mais de idade no país (22.169.101) chegou a 10,9% da população, com alta de 57,4% frente a 2010, quando esse contingente era de 14.081.477, ou 7,4% da população. Já a população idosa de 60 anos ou mais é de 32.113.490 (15,6%), um aumento de 56,0% em relação a 2010, quando era de 20.590.597 (10,8%). É o que revelam os resultados do universo da população do Brasil desagregada por idade e sexo, do Censo Demográfico 2022. Esta segunda apuração do Censo mostra uma população de 203.080.756 habitantes, com 18.244 pessoas a mais do que na primeira apuração. Acima, os dados referentes à população de Venda Nova do Imigrante (*Fonte: IBGE)

Em uma visão mais ampla, Venda Nova do Imigrante emerge como um epicentro de experiências enraizadas na tradição, mas também dinamizadas por uma mentalidade empreendedora que desafia estereótipos. “O município fortemente influenciado pela imigração italiana destaca-se no agroturismo, onde a tradição dos produtos é transmitida de geração em geração desde a chegada dos imigrantes. É evidente os herdeiros na gestão dos negócios trazendo o resgate cultural. A atividade tem influência do agro, com a lida na roça, e vem se moldando há décadas na região. A ideia de trabalho árduo como construtor fundamental, enraizada na cultura, reflete-se nos produtos como o socol, com Indicação Geográfica, destacando-se pela inovação e encantando turistas. A narrativa associada a esses produtos é o grande diferencial de Venda Nova”, avalia Rafaela Caliman, analista técnico do Sebrae/ES, Unidade Regional Serrana.

Os irmãos Leandro, Antônio e Pedro, e Lorenzo (2º da esquerda para direita): diálogo e gestão profissional são fundamentais para a transmissão da cultura entre as gerações.

Resiliência

Antônio (64), da Fazenda Carnielli, compartilha sua filosofia sobre a aposentadoria: “A aposentadoria é viável para qualquer pessoa. Só que não se pode pegar o benefício e dizer que acabou, se não você vai para o cemitério. Se você fica parado aqui, encalha igual a um navio”, afirma. O pensamento resiliente se traduz em uma vida ativa e engajada, onde a prestação de serviços à comunidade (*Saiba mais na última parte desta reportagem) se torna uma ocupação contínua para evitar a inatividade e contribuir para o desenvolvimento local.

Além da ativa participação nas operações do agroturismo, a mentalidade “italiano não se aposenta” se reflete nas ambições pessoais de Pedro Carnielli (60). “Faz parte da cultura, do sangue. Italiano não consegue ficar quieto. Se aposenta financeiramente, mas continua se movendo. É um ponto bom porque, com a cabeça e o corpo se movimentando, protela um pouco a aposentadoria no sentido de parar com todas as atividades. A cabeça não pode parar não”, enfatiza Pedro. Essa perspectiva não só desafia concepções convencionais sobre a aposentadoria, mas também destaca a importância de manter mente e corpo ativos para uma vida plena e significativa.

Ao refletir sobre a perspectiva de envelhecimento e aposentadoria na comunidade, Antônio Carnielli apresenta uma visão descontraída sobre a estabilidade financeira e os desafios que a idade traz: “Devagar você vai subindo e chega uma hora em que se estabiliza financeiramente e vive com aquilo que tem. Você não pode parar. Fez o pé de meia, tem que manter. No entanto, não fico investindo como antes, só em lazer. Só por problema de saúde que não vou ao trabalho. O desafio é a saúde mental e física”, diverte-se ao relembrar as palavras do pai de sua mãe: ‘No dia em que tiver 70, 80 anos você vai ver se vai sair ou não”.

Em meio às atividades agitadas da fazenda e à busca por equilíbrio entre vida pessoal e profissional, Pedro Carnielli compartilha seus sonhos e a visão singular de sucesso: “Eu sempre almejei ganhar dinheiro, mas aqui na fazenda é tanta coisa para fazer que o sonho é comprar a máquina para manter a casa direitinho, um sistema de água quente para todo mundo, um carro bom, uma casa boa, poder viajar. Não é acumular, mas a empresa é uma empresa, então são duas coisas que separo: minha vida e a empresa. O que vou deixar para frente é a empresa, que tem uma vida como outra qualquer e batalhar para sobreviver. E o outro é a vida particular, que quero tocar e usufruir um pouco mais, o que já estou conseguindo. É outra realidade, diferente da dos meus pais.”

Essas narrativas, entrelaçadas pelos fios da tradição, inovação e resistência ao envelhecimento percebido, ecoam não apenas como histórias individuais, mas como testemunhos de uma comunidade que, através do agroturismo, tece um legado duradouro. Em um território onde são guardados segredos de gerações, o lema “italiano não se aposenta” ressoa como uma sinfonia que transcende o tempo, inspirando não apenas os habitantes locais, mas todos nós, a desafiar limites, sonhar além e abraçar uma vida plena, independentemente da idade

Mesmo após os 70 anos, Lúcia Altoé (D) continua inovando e contribuindo ativamente para o agroturismo.

Entre os personagens que personificam resiliência e paixão pelo agroturismo, destaca-se Lúcia Altoé (72) dos produtos caseiros “Tia Cila”, que leva o nome da irmã pioneira, falecida em 2007. Ela é a personificação da máxima “italiano não se aposenta”. Não apenas testemunhou a evolução da modalidade turística, como também contribuiu ativamente para sua transformação. Lúcia, que antes era projetista e professora, encontrou na produção artesanal de biscoitos uma nova forma de expressão.

Seu mais recente empreendimento, os biscoitos de amendoim fresco, tornaram-se verdadeiros protagonistas, conquistando o paladar dos visitantes e gerando uma demanda surpreendente. “Italiano não aposenta, só inventa”, ela sorri, enquanto assa seus biscoitos com a clara que sobra do preparo do bolo d´água, uma tradição que se mantém conectada às raízes.

Lúcia conta que o sonho da família era transformar o quintal numa propriedade do agroturismo há mais de 30 anos. “Esse sonho aconteceu, a gente foi trabalhando, cada um fazendo um pouco, passamos por muitas barreiras, mas foi mais rápido do que imaginávamos. O importante foi encontrar formas de nos manter no meio rural. Enquanto a gente tiver saúde, a gente vai”, diz.

Ao contrário dos outros entrevistados, Lúcia Altoé não tem descendentes. A única sobrinha no agroturismo é Cláudia Altoé (59), com uma loja de artesanato ao lado dos produtos Tia Cila. Lúcia atua ao lado da irmã Sônia (59), cujas filhas seguiram outras profissões, sendo que uma delas ajuda no atendimento da lojinha quando recebe grupos maiores. “Infelizmente não tem ninguém para suceder nos negócios”, lamenta Lúcia.

Sem tempo para sofrer com o futuro, o exemplo da empreendedora revela não apenas uma mentalidade laboriosa, mas também a capacidade de reinvenção que permeia as histórias da “Capital Nacional do Agroturismo”. Sua trajetória ecoa a mensagem de que a aposentadoria, para os italianos de Venda Nova, não é uma despedida, mas uma entrada para novos capítulos de empreendedorismo e criatividade.

A vitalidade de Lúcia Altoé vai além da produção de biscoitos. É um testemunho de como a paixão pelo agroturismo pode ser uma fonte inesgotável de energia, não importa a idade, até para os momentos de lazer. “Este ano viajei pela primeira vez de avião e ano que vem o farei novamente”, revela como tem investido seu dinheiro.


Enedina Caliman Brioschi (84) bate ponto em quase todas as iniciativas voluntárias locais há 44 anos.

Tecendo propósito: o impacto vital do voluntariado em Venda Nova após a aposentadoria

O voluntariado em Venda Nova do Imigrante desempenha papel vital ao manter as pessoas acima dos 50 anos ativas mesmo após se aposentarem. Essa faixa etária, muitas vezes negligenciada por oportunidades de emprego tradicionais, encontra nos diversos grupos voluntários da cidade, também com o título de “Capital Estadual do Voluntariado”, uma maneira significativa de contribuir para a sociedade.

A Apae, por exemplo, com 400 voluntários, destaca-se como instituição que acolhe essa parcela da população, proporcionando-lhes um propósito renovado e uma conexão om a comunidade. A dedicação dos voluntários, mesmo diante de desafios como a pandemia, destaca-se como um testemunho do impacto positivo que o voluntariado tem na vida das pessoas mais velhas. Uma fase pós-aposentadoria com mais relevância e significado.

“Minha filosofia de vida é que o bem um dia retorna para mim”, diz Walber Naumann (66), coordenador das equipes de limpeza nas festas. “Já acompanho Venda Nova há mais de 30 anos e sempre vi as coisas funcionarem de forma coletiva e com voluntariado. A cultura de formação é totalmente diferente de outros lugares pelos quais passei. Aqui o povo é mais dedicado e se doa mais ao próximo. Ser voluntário é servir, fazer o bem, poder se doar e se entregar naqueles momentos em que você tem dificuldade de poder participar, mas não pode esmorecer. É estar de mãos dadas e unido com quem quer fazer o bem”.

Além disso, o voluntariado se revelou uma oportunidade valiosa para mulheres que, após se aposentarem e não tendo uma atividade específica, encontram nas associações voluntárias uma forma de se envolver. Grupos como as Voluntárias Pró-Hospital Padre Máximo e a Associação Pró-Saúde do Centro Fitoterápico de VNI (Pastoral da Saúde) oferecem um espaço inclusivo e acolhedor para essas mulheres canalizarem suas habilidades e energias em atividades que beneficiam diretamente a comunidade.

Enedina Caliman Brioschi (85) bate ponto em quase todas as iniciativas voluntárias locais há 44 anos. É uma das pioneiras da Avapae, das Voluntárias Pró-Hospital Padre Máximo, da cozinha da Festa da Polenta e ainda dá expediente na Pastoral da Saúde. Para ela, voluntariar é uma “terapia maravilhosa”.

“Deus me livre se não tivesse isso aqui! O trabalho voluntário preenche meu tempo e está dentro do meu coração. No dia que a gente não pode vir, só no caso de doença, é uma tristeza. Cada tijolinho que você coloca é para o nosso futuro com Deus. Passar nessa Terra sem fazer nada para o próximo? Faz bem tanto para a alma quanto para o corpo”, filosofa a popular Dina.

A produção de bordados, fitoterápicos e outros itens destaca não apenas a resiliência dessas mulheres, mas também como o voluntariado proporciona uma plataforma para a expressão criativa e a construção de laços sociais, demonstrando que a participação ativa nessas associações se tornou uma forma valiosa de envolvimento social e empoderamento para as mulheres em Venda Nova do Imigrante.

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