Sustentabilidade

Café sustentável: zero glifosato, menos herbicida e mais grana

O consórcio café conilon/braquiária, que a princípio gerava estranhamento, transformou o cultivo de café conilon na propriedade

por Rosimeri Ronquetti

em 14/10/2024 às 5h00

13 min de leitura

Muito antes do termo sustentabilidade dos grãos fazer parte do vocabulário dos cafeicultores e dos órgãos ligados ao setor no Espírito Santo, Tiago Camiletti, de Córrego Patioba, em Sooretama, no Norte do ES, já apostava no manejo sustentável das suas lavouras. Há nove anos o produtor rural iniciou uma verdadeira revolução no cultivo do café conilon.

O primeiro passo rumo a uma cafeicultura sustentável na propriedade foi a conquista, em 2015, do Código Comum para Comunidade Cafeeira (4C) da Nestlé, certificado que assegura a sustentabilidade dos grãos. No ano seguinte, testou o plantio de café com braquiária entre as carreiras. Comum no cultivo do arábica, a técnica também deu certo no conilon.

O consórcio café conilon/braquiária, que a princípio gerava estranhamento e rendeu ao produtor o título de “doido plantador de braquiária” na região, virou objeto de pesquisa da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo (USP), que comprovou a contribuição da prática no desenvolvimento do café e na preservação ambiental.

Os estudos confirmaram o que a gente percebeu desde a primeira área plantada. Comprovaram cientificamente o aumento de matéria orgânica e melhora da microbiota e descompactação do solo, além da redução do uso de herbicida. A braquiária é uma excelente aliada do cafeicultor”, pontua Camiletti.

As mudanças implementadas por Camiletti na cafeicultura não se restringiram ao uso da braquiária e à certificação 4C. Ao mesmo tempo que adotava estas medidas, o produtor apostou na inovação para aumentar sua produção e conseguir melhores preços. Para isso, intensificou a poda programada, o adensamento do plantio, passou a usar biofertilizante para adubação e produtos biológicos para pulverização das lavouras.

As iniciativas, divisoras de águas na trajetória do produtor, transformaram econômica, social e ambientalmente, o cultivo dos 5,5 hectares de café plantados na Fazenda São Sebastião. Com o capim, Camiletti zerou o uso de glifosato para limpeza da roça, reduziu em 80% o uso de herbicida para controle de pragas e só faz pulverização com produtos biológicos.

Já na adubação o produtor utiliza cerca de 60% de biofertilizante orgânico e apenas 40% de adubação química. Todas essas mudanças permitiram a redução dos custos de produção em cerca de 30%.

Plantamos a braquiária, fazemos algumas roçadas, depois plantamos o café. Essa roçada libera nutrientes para o solo e aumenta a retenção de água. A braquiária também abriga inimigos naturais que controlam os insetos, o que reduz a aplicação de inseticidas e fungicidas, e dispensa a aplicação de herbicidas para controlar o mato, apenas a roçagem é suficiente. Diminuímos a quantidade de adubo e de herbicidas, consequentemente, os custos caem”, explica o produtor.

Com zero glifosato nos grãos, atestados por processos de análises químicas, enquanto a saca de 60 quilos do grão é comercializada em média por R$ 1.300, Camiletti chega a receber R$ 6.000 pelo seu café. Atualmente, 80% da produção é commodity e 20%, café especial. Desses 20%, 2% são beneficiados e comercializados em grãos torrados ou moídos pela Camiletti Coffee, marca própria criada pela família. Camiletti já fez café de até 87 pontos.

Outra mudança significativa foi a rentabilidade. Enquanto a média estadual de produção é de 44 sacas por hectare, o produtor colhe entre 110 e 120 e já atingiu o patamar de 210 sacas por hectare, em algumas áreas.

Mudou tudo na propriedade. Aumentamos muito a produção por área, temos um produto de mais qualidade e maior valor agregado. O manejo da lavoura, da forma que passamos a fazer, deixa o trabalho mais fácil. Os meus colaboradores têm muito mais rentabilidade e praticidade para desempenhar o serviço na lavoura. Enquanto o dilema da cafeicultura é a falta de mão de obra, eu até dispenso pessoas que querem trabalhar para mim”, conta Camiletti.

Para o produtor, a sustentabilidade é fundamental em todos os segmentos, um caminho sem volta que deve partir do agronegócio. “É a sustentabilidade que vai avalizar a permanência do produtor no campo e sucessão familiar responsável”.

 

O caminho para emissão de carbono neutro

Em 2015, no início do processo de transformação da propriedade, Camiletti foi convidado para fazer parte do programa Nescafé Plan, da Nestlé. No projeto, os participantes recebem suporte técnico com o objetivo de aumentar a produtividade e proteger os ecossistemas. “Tinha a ideia de produzir sem uso de defensivos e essa foi a oportunidade que tanto esperava”, relembra.

Camiletti topou, e o que começou de maneira tímida, tomou grandes proporções. Hoje, a busca é pelo carbono neutro na propriedade, e ele parece não estar longe desse objetivo. O olhar visionário e a ousadia do produtor já renderam a ele o reconhecimento, por parte do Programa Cultivando com Respeito 2024, da Nestlé, de propriedade mais sustentável do país e a mais avançada no processo de agricultura regenerativa, na emissão de carbono. Cerca de cinco mil propriedades de todo o país participam do programa.

Esse reconhecimento, para nós, é a certeza de que estamos no caminho certo. Uma segurança de que os meus filhos terão um futuro promissor no agronegócio sustentável, por meio dessa prática de uma agricultura que é exemplo. Realmente é uma satisfação muito grande receber um reconhecimento desse.”

Para acelerar a busca pelo carbono neutro, no final de 2023 Camiletti deu início à implantação do projeto de agrofloresta em suas lavouras. “Eu gosto de desafios, e topei mais este. Estamos com o olhar voltado para agricultura regenerativa, para diminuição da emissão de carbono”.

Tiago acredita que o manejo sustentável também ajuda na sucessão familiar da propriedade

Cerca de 1,5 hectare já recebeu mudas de espécies como fedegoso, ingá, fedegosinho, erva baleeira. A previsão é chegar ao final deste ano com 100% das suas lavouras no sistema agroflorestal. O projeto é feito com uma carreira de árvores a cada 30 metros.

As mudas para compor o ecossistema não foram escolhidas por acaso. Com o intuito de introduzir a criação de abelha nativa sem ferrão uruçu amarela na propriedade, as plantas selecionadas atraem as abelhas. Além de ajudar na polinização do café, a uruçu amarela contribui para a atração de insetos que combatem pragas nas lavouras.

Fazendo história

Vencidos os desafios iniciais da caminhada em busca da sustentabilidade, a Fazenda São Sebastião se tornou referência para estudantes de todo o Estado e pesquisadores internacionais.

Quando comecei, não existia assistência técnica disponível para esse modelo de cafeicultura como temos hoje. Não se ouvia falar de braquiária consorciada com café, calagem de gesso, esterco de galinha para cobertura de solo. Não se levava em consideração, em uma interpretação de análise de solo, os índices de matéria orgânica. Eu fui na contramão disso tudo. Fui muito desacreditado, mas não desanimei. Comecei a ver que era possível construir esse novo modelo de agricultura, e hoje abrimos as portas para quem quer aprender.”

Uma equipe de engenheiros e técnicos da Guatemala, responsável por uma associação de cafeicultores com 360 mil hectares de café, visitam anualmente a propriedade em busca de informações. Profissionais da Nestlé, da Alemanha e da França também já visitaram a fazenda para conhecer o trabalho de sustentabilidade desenvolvido por Camiletti.

Estudantes de engenharia agronômica e de cursos técnicos ligados ao agro, também usam a propriedade como base de estudos, tanto para visitas técnicas quanto para o desenvolvimento de estágio obrigatório. Cleidson Miguel Lagaci de Souza, 19 anos, de Vila Valério, foi um aluno que fez estágio por lá. Estudante de Engenharia Agronômica, Cleidson cumpriu a carga horária de estágio obrigatório da disciplina sobre café e energia sustentável.

Escolhi a propriedade do Tiago justamente pela forma que ele trabalha, pela inovação no cultivo. Uma outra propriedade como a dele, na nossa região, eu não conheço. Certamente esse tempo que passei lá me fez aprender muito sobre sustentabilidade da cafeicultura e vou levar muita coisa para minha vida profissional”, conta o estudante.

Os alunos do curso técnico em Agronegócio do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar/ES), Polo Rio Bananal, também foram ver de perto o trabalho desempenhado por Camiletti, como parte do cumprimento da unidade curricular: técnicas e sistema de produção agropecuária. Estudando os cenários produtivos das principais atividades agrícolas do Estado, entre elas a cultura do café, escolheram a Fazenda São Sebastião.

do curso técnico em Agronegócio do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar/ES), Polo Rio Bananal

O tutor da turma, Bruno Lucas da Costa, explica que a escolha se deu “por se tratar de uma realidade potencial do agronegócio capixaba, com produção bem acima da média estadual, além de práticas de manejo que otimizam o espaçamento entre plantas, chegando ao dobro da média de plantas por hectares, comum em nossas lavouras”.

O tutor ressalta ainda que “além dos números expressivos, a propriedade evidencia, na prática, como ser eficiente com máxima responsabilidade sustentável, alinhando o equilíbrio econômico, ambiental e social, e permite a comercialização do seu café para outros continentes”.

Fico feliz por contribuir com a formação desses alunos. Estamos vendo engenheiros agrônomos entrando no mercado já com essa visão de uma agricultura regenerativa e sustentável, enxergando que não é preciso mais desmatar, é só fazer uma agricultura regenerativa com o que já temos que vamos alcançar bons patamares.

Sustentabilidade por toda parte

Casado com Rosana e pai da Isadora e do Bento, Tiago Camiletti adicionou um quarto pilar ao conceito de sustentabilidade. Além dos aspectos social, econômico e ambiental, o produtor incorporou o conceito educacional. Na prática, o novo pilar significa o engajamento e envolvimento de toda a família no processo.

Não vejo hoje uma agricultura que não tenha sustentabilidade e que não desenvolva nas pessoas que fazem parte do vínculo familiar esse entendimento. É preciso trazer a família para dentro do negócio. É a preparação para o futuro, é uma continuidade do trabalho

Tiago com a esposa Rosana e os filhos Bento e Isadora

Tiago Camiletti conta que desde o começo busca o engajamento da esposa e dos filhos, por menores que sejam, e que muita coisa mudou desde então. “Mudou até a minha relação de casal com a minha esposa a partir do momento que ela começou a participar dos negócios, entender como as coisas funcionam”.

No dia a dia, Camiletti divide as tarefas da propriedade, ou empresa rural, como ele gosta de dizer, com a esposa Rosana Camiletti. Enquanto ele cuida da produção e comercialização, Rosana cuida da parte administrativa e financeira. Tudo passou a ser contabilizado.

Ele fica muito envolvido na roça e eu cuido das anotações de tudo que é comprado, tudo o que é pago, o que ainda pagaremos no futuro e controle bancário no geral. Hoje, conseguimos saber o custo de produção e saber se deu lucro”, explica Rosana.

Bons exemplos de produção sustentável de café

 

Valmir Cazagrande, Fazenda Rio Preto, Jaguaré

Cafeicultor desde sempre, Valmir Cazagrande, da Fazenda Rio Preto, Córrego São Geraldo, em Jaguaré, foi convencido pelos filhos a investir no plantio de café conilon com capim mombaça nas entrelinhas. Em 2020 iniciaram a experiência com oito hectares, e em seguida fizeram mais uma área com 11 ha.

O objetivo era a cobertura das entrelinhas do café para disponibilizar matéria orgânica para o solo. De lá para cá já diminuíram a aplicação de herbicidas em mais de 80% e a adubação passou a ser feira com organominerais, uma vez que o capim, depois da roçagem, passa a ser um adubo verde.

Pensamos na facilidade do manejo, porém, se aliado a isso vier a conservação do solo e o menor uso de defensivos químicos, melhor ainda”. Pontua Higor Cazagrande, filho do Valmir.

O próximo passo é a utilização de outras variedades de plantas na cobertura das entrelinhas, como o mix de sementes de plantas como a crotalária, milheto e o nabo forrageiro, entre outros, à medida que forem se adaptando ao clima da região.

Luiz Cláudio de Souza, Sítio Grãos de Ouro, Muqui

O produtor de café conilon especial é tricampeão no Coffee of the Year. O cafeicultor venceu por dois anos consecutivos (2018 e 2019) o “Coffee of the Year” (Melhor Café do Ano), na Semana Internacional do Café (SIC), e foi vice-campeão em 2020.
No mesmo ano venceu também o 6º Torneio do Melhor Café Fairtrade do Brasil, “Taza Dorada Brasil”, na categoria para microlotes de conilon e o 16º Concurso Nacional Abic de Qualidade do Café – Origens do Brasil (Safra 2019), promovido pela Associação Brasileira da Indústria de Café.

Os processos de mudanças começaram quando a Cooperativa dos Cafeicultores do Sul do Estado do Espírito Santo (Cafesul), da qual Luiz Cláudio é sócio-fundador, conseguiu a certificação Fairtrade, em 2008. Naquela época, já deixou de usar defensivos químicos na lavoura. Mais adiante, no processo de certificação orgânica, o produtor deixou de usar também adubação química e, em 2021, a propriedade de três hectares se tornou 100% orgânica.

Clayton Monteiro, Fazenda Ninho da Águia, Alto Caparaó, MG

Clayton produz café especial de maneira agroecológica no entorno do Pico da Bandeira, na divisa entre Espírito Santo e Minas Gerais. Os trabalhos dele tornaram-se referência. A “Ninho da Águia” foi a primeira fazenda do município a receber turistas interessados em cafeicultura.

Em meio às matas preservadas, nascentes e plantios consorciados, árvores nativas e frutíferas se mesclam ao contorno das lavouras. Em 2011, o cafeicultor certificou a fazenda pelo selo “Certifica Minas” como livre do uso de agrotóxico e começou a participar de concursos de qualidade.

A produção atual é em média de 400 sacas por ano, sendo de 70% a 80% de cafés especiais. Cleyton já conquistou vários prêmios: ele é bicampeão do Coffee of the year (2014 e 2015), 1º lugar no concurso de qualidade Emater-MG, em 2012, e tetra-campeão do concurso de qualidade regional de Manhuaçu, MG.

Willians Valério Júnior, Sítio Recanto dos Tucanos, Alto Caparaó, MG

O produtor Willians Valério Júnior, produz café arábica em equilíbrio com mais de 100 espécies. Uma “floresta de comida”, segundo palavras dele, com mogno africano, eucalipto, banana, azeitona, milho, feijão, batatas de todos os tipos, pêssego, entre outras.
No Sítio Recanto dos Tucanos, a cerca de 1.500m de altitude, o cafeicultor colhe em média 20 sacas de café de agrofloresta e já fez café de 90,5 pontos. Willians foi o vencedor do Coffee Of The Year em 2019, e ficou em 2º e 6º lugares em 2020.

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