As mudanças climáticas e o desafio de preservar a tradição do socol
Produtores de Venda Nova do Imigrante (ES) enfrentam inverno seco e buscam adaptar processos para preservar a essência do embutido artesanal com Indicação Geográfica
por Leandro Fidelis
em 13/01/2025 às 5h00
5 min de leitura

Presunto maturado de origem italiana é estrela da Capital Nacional do Agroturismo (Venda Nova do Imigrante, região serrana do Espírito Santo) e produto de Indicação Geográfica (IG) desde 2018. (*Fotos: Leandro Fidelis/Arquivo Conexão Safra- imagens com direito autoral/proibida reprodução sem autorização)
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O socol, embutido artesanal e símbolo cultural de Venda Nova do Imigrante (ES), enfrenta um dos maiores desafios de sua história: as mudanças climáticas. As altas temperaturas e a baixa umidade registradas nos últimos anos estão comprometendo o processo natural de maturação do produto de Indicação Geográfica, impactando a qualidade e a tradição.
Segundo Ednes José Lorenção, produtor do Sítio Lorenção, o inverno de 2024 foi especialmente crítico. O município, que historicamente apresentava umidade média superior a 60%, registrou índices de apenas 38% a 40%, alterando drasticamente o processo de fermentação.
“Sem a vinda dos fungos, o socol fica pronto antes da hora. Isso compromete o sabor e a textura, tornando o embutido mais duro e seco”, explica.
A maturação lenta, que tradicionalmente durava entre quatro e seis meses, é essencial para desenvolver as características únicas do socol. Durante esse período, os fungos externos criam uma camada protetora que preserva a umidade e regula o pH interno, permitindo que as bactérias lácticas fermentem o embutido. O processo é responsável por produzir compostos que dão ao socol seu sabor adocicado, equilíbrio entre sal e pimenta e textura macia.
Com a aceleração da secagem, o sabor muda consideravelmente. “Sem a fermentação lenta, o sal e a pimenta ficam mais evidentes, enquanto o sabor típico de embutido bem fermentado vai se perdendo”, alerta a engenheira de Alimentos e também produtora de socol Graccieli Lorenção.
Maturação acelerada
Outro fator que contribuiu para a aceleração da maturação é a substituição da película que envolve o socol. Até 2022, os produtores utilizavam o peritônio, membrana natural retirada da barriga do porco. Embora eficaz em manter a umidade por mais tempo, a pele trazia riscos de contaminação, já que carrega bactérias do animal.
A adoção do colágeno natural trouxe segurança microbiológica, mas impactou diretamente o processo artesanal, conta Graccieli. Mais porosa, a capa de colágeno acelera a secagem, reduzindo o tempo de formação da aparência característica do socol de 2-3 semanas para menos de uma semana. “Sem a retenção de umidade que o peritônio proporcionava, o embutido seca muito mais rápido, e isso interfere diretamente na qualidade final”, explica.
Com o clima seco dificultando o equilíbrio natural, os produtores têm buscado alternativas. “Se continuar assim, talvez a instalação de umidificadores seja inevitável, como já acontece em granjas de porcos”, sugere Ednes.
A instalação de câmaras frias com controle de umidade também é cogitada, mas os custos são proibitivos para a maioria dos produtores artesanais. “O investimento é alto, e isso pode inviabilizar o trabalho para quem faz o socol de forma tradicional”, lamenta o produtor.
Regulação
O Selo Arte, que permite a comercialização de produtos artesanais em todo o país, tem sido uma salvaguarda para os produtores, permitindo que mantenham práticas tradicionais sem abrir mão de padrões sanitários rigorosos. No entanto, os desafios técnicos e estruturais permanecem.
Mais Conexão Safra
No Brasil, conforme a engenheira de alimentos, a legislação exige que o socol seja produzido em ambientes revestidos de metal e azulejo, que não retêm umidade, ao contrário das estruturas de madeira permitidas na Itália, país de origem da tradição. Essa diferença agrava ainda mais os problemas causados pelo clima seco nas Montanhas Capixabas.
As alterações no processo de maturação já estão gerando impactos perceptíveis. Em alguns lotes, os socóis têm sido retirados com apenas 45 dias para evitar que endureçam ou sequem demais. Isso, no entanto, gera um produto com características sensoriais diferentes, algo que tem preocupado os produtores e desagradado consumidores mais atentos. “Já tivemos turistas reclamando da consistência e do sabor”, relata Graccieli Lorenção.
Além do socol, outro embutido produzido no Sítio Lorenção, o culatello, feito com pernil suíno, também têm sofrido os mesmos impactos do clima seco, demonstrando a amplitude do problema.
Futuro
Graccieli também levanta uma preocupação sobre o futuro dos fungos e bactérias essenciais à produção.
“Os esporos que temos aqui talvez não sejam os mesmos que existem em outras localidades de Venda Nova. Com as mudanças climáticas, será que uma bactéria competidora pode acabar eliminando esses microrganismos que fermentam o socol? Isso é algo que ainda não sabemos”, reflete.
Diante dos desafios impostos pelas mudanças climáticas, os produtores de socol têm buscado maneiras de adaptar os processos sem comprometer a essência do produto. No entanto, a situação exige atenção, inovação e apoio técnico.
“A gente fica preocupado, mas temos que achar uma solução. Talvez mudar algo no ambiente ou no processo, mas sem perder a identidade do socol”, conclui Ednes.
O futuro do socol, assim como de muitas outras tradições artesanais, depende não apenas da capacidade de adaptação dos produtores, mas também de um olhar atento para os impactos das mudanças climáticas na preservação de saberes e sabores únicos.
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