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A voz das invisíveis

A história de mulheres que, com informação e microcrédito, saíram da linha de extrema pobreza e transformaram a própria realidade no meio rural

por Leandro Fidelis e Rosimeri Ronquetti

em 24/08/2023 às 6h06

12 min de leitura

A voz das invisíveis

De “invisível” à peixeira conhecida em Mantenópolis: Valdineia Almeida da Silva (33) celebra o milagre dos peixes do pesqueiro que ampliou com suporte do Projeto Dom Helder Câmara. (*Fotos: Leandro Fidelis/Conexão Safra- *Imagens com direitos autorais)

Elas têm nome, sobrenome, carteira de identidade e endereço fixo, mas a distância da cidade e dos órgãos de apoio dos governos por muito tempo fez delas mulheres invisíveis.

Além de representarem milhares de famílias do meio rural no Espírito Santo (Brasil), o que mais Valdineia (Mantenópolis), Marineuza (Pinheiros), Izamara (Conceição da Barra), Heliamar (Água Doce do Norte) e Telma (Boa Esperança) têm em comum é o fato de não serem percebidas pela sociedade.

As agricultoras pertencem às 1.577 famílias capixabas selecionadas para participar do Projeto Dom Helder Câmara, executado pelo Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (Incaper) e pela Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Anater).

O extensionista e coordenador do projeto pelo Incaper, Ivanildo Küster, explica que o objetivo do ‘Dom Helder’ é atender justamente o público “invisível”, ou seja, o proprietário rural que não é assistido pelas empresas privadas e nem pelo serviço público, com raríssimas exceções.

“Na maioria das vezes essas famílias são invisíveis para a sociedade. Nós extensionistas passamos a conhecer a realidade de muitas delas a partir do projeto, o que nos trouxe preocupações, pois muitas vezes presenciamos situações que nos deixaram perplexos”, relata o coordenador.

Küster ressalta ainda que, além do recurso financeiro e da extensão rural, o projeto levou a esperança de uma vida melhor.

“Essas famílias não receberam apenas dinheiro e conhecimento de práticas agrícolas, mas também informações sobre acesso a direitos básicos, princípios educacionais para jovens e adultos com objetivo de alterar hábitos e mudanças de pensamento. Receberam o que talvez tenha sido o mais importante: a esperança de uma vida melhor”, explica.

“O programa renovou todas as nossas esperanças. Aconselho todo mundo a procurar ajuda porque o ‘Dom Helder’ transforma muitas vidas”, afirma Telma Oliveira da Silva (39), cafeicultora do município em que até o nome inspira: Boa Esperança.

Com os R$ 2.400 do fomento, Telma preparou o terreno, comprou adubo natural e plantou 1.000 pés de café conilon com a assistência técnica do Incaper. “Veneno, só pra matar o mato”.

Um ano depois, com a documentação da propriedade legalizada, ela e o marido conseguiram, por meio de cada CPF, o crédito de R$ 5.000 do Pronaf B, via Banco do Nordeste, para investir em irrigação.

A lavoura está em pleno desenvolvimento. Enquanto não ocorre a primeira catação, Telma faz renda com banana, abóbora, aipim e milho verde plantados entre as carreiras de café. Vende tudo na feira semanal, para onde ainda leva pamonha e bolo de milho.

“Antes da pandemia, eu fazia R$ 200 por sábado na feira”, diz”.

Apesar da suspensão da feira, o casal continuou cuidando das lavouras e mantendo as entregas de verduras e legumes sob encomenda por telefone.

E assim Telma promove sua revolução tímida na roça onde vive mais feliz com a família.

“Vamos plantar mais mil mudas de café e duzentas de pimenta-do-reino. Se Deus quiser, dentro de algum tempo isso vai se transformar em algo muito maior”, aposta.

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Além da sonhada casa, outra prioridade da cafeicultora é implantar a fossa séptica e garantir adubo para a lavoura.

“O ‘Dom Helder’ foi mais que um empurrão. Foi essencial para a gente mudar de vida. Agora vamos poder fazer nossa casinha através das portas que o café vai abrir. O programa renovou todas as nossas esperanças. Aconselho todo mundo a procurar ajuda no Incaper, porque o projeto transforma muitas vidas”.


A água que rega o quilombo

Com acesso pela estrada da Vila de Itaúnas, em Conceição da Barra, a comunidade Angelim 2 foi o refúgio de muitos negros no período da escravidão no Brasil.

Os plantios comerciais de eucalipto no caminho parecem proteger as dezenas de famílias quilombolas do lugar. Mas a paisagem é muito atual para imaginar qual seria a barreira natural dos cativos para evitar o trabalho forçado e manter as tradições longe da vista do homem branco.

É ali que vive Izamara dos Santos de Oliveira (38), casada e mãe de seis filhos. A descendente de escravos nasceu em Angelim 2 e sempre viveu da agricultura.

Izamara é uma das “guerreiras” da comunidade, onde sempre foram as mulheres que “batalharam na horta, na roça, no pesado”, enquanto os homens continuam a sair para trabalhar na cidade.

As diversas plantações de urucum, aipim- só para citar as mais tradicionais entre os quilombolas- e de verduras e legumes não prosperavam com a escassez de água para irrigação. Até que Izamara viu “raiar a liberdade no horizonte” quando o Incaper lhe apresentou o Projeto Dom Helder Câmara.

O fomento em dinheiro permitiu à agricultora reformar a horta orgânica, comprar enxada, mangueira e caixa d’água há um ano e meio. A irmã, Ivamara, é outra beneficiada pelo programa.

Para Izamara, o recurso fez toda a diferença na vida da família.

“Eu não tinha condições financeiras para fazer o que foi feito aqui na horta. Os equipamentos melhoraram a produção, que precisa muito de água. Antes, eu plantava e os legumes e verduras murchavam porque não tinha como molhar. Não dava aquela coisa bonita. Às vezes eu semeava as sementes, que nem nasciam por falta d’água. Eu tinha que trazer de regador”, diz.

Apesar das dificuldades geradas pela pandemia, Izamara nos dá um sorriso gratuito e verdadeiro. Uma mulher que se sentia invisível antes de ser selecionada pelo ‘Dom Helder’ e que nunca deixou de sonhar.

A curto prazo, a agricultora quer terminar a casa, “bater uma laje”, para viver com mais conforto com cinco dos seis filhos. É a tradução da qualidade de vida almejada com a renda da horta orgânica.

O outro sonho é uma vida mais digna para os jovens pretos no campo.

“Gostaria de ver meus filhos e netos vivendo como fui criada. Infelizmente, os adolescentes quando completam 18 anos querem ir embora e arrumar serviço na rua. Eles pensam: ‘isso não é pra mim, não aguento isso não’. Mas a gente tenta o máximo possível mostrar pra eles que a tradição tem que continuar. Deveria haver mais projetos que incentivassem os jovens a permanecer no campo, mas podendo fazer faculdade no lugar onde vivem”, conclui Izamara.


Sonho de fazer café de qualidade

Heliamar Alves (42) é uma mulher rural que faz muito com pouco na comunidade da Cabeceira do Córrego do Garfo, a 14 km do centro de Água Doce do Norte, no noroeste capixaba.

O projeto dela é produzir café de qualidade. E a chance de colocá-lo em prática foi o recurso financeiro do Projeto Dom Helder Câmara para plantar 500 pés de conilon a partir de novas e diferenciadas práticas agrícolas sob assistência do Incaper.

A agricultora e o marido já cultivavam 1.500 pés que nunca chegaram a produzir pra valer pela inexperiência com a cultura. “Já faz quatro anos que nem chega a fazer colheita”, conta ela.

Heliamar conta que soube do programa por meio de uma amiga e logo procurou o escritório local do Incaper para se informar.

“Vi que era verdade e foi muito bom, porque se não fosse o recurso, não teria condições. O dinheiro deu para arrumar a terra, comprar as mudas e o adubo e, com orientações, limpamos o terreno que era tudo capoeira. Foi um ‘empurrãozão’ pra frente, e agora é continuar firme. O que a gente colher a gente quer investir. O ‘Dom Helder’ faz a gente sonhar”.

Longe de tudo. Quase invisível. Heliamar tinha tudo para não dar certo.

“Trata-se de uma família bem excluída, que muito dificilmente iria se desenvolver sem a assistência do ‘Dom Helder’. A visão que eles aprenderam foi o maior ganho. Viram na prática, a partir das 500 plantas, como aplicar conhecimento numa pequena área. Heliamar e Juarez não têm vício em bebida e drogas. Infelizmente, muitas famílias atendidas pelo programa não foram para frente por causa desses problemas”, avalia o extensionista do Incaper de Água Doce do Norte, Carlos Marcos Alves dos Santos.

E Heliamar enche de positividade sua labuta diária. É porque vê além do alcance. A meta é, na primeira catação dos 500 pés, colher “madurinho, não deixar azedar no terreiro suspenso…”. Participou de três cursos e decidiu aprender mais sobre cafés de qualidade.

O estalo veio após um evento em Mantenópolis antes da pandemia.

“Vi um produtor no meio de tantos ganhar um prêmio de qualidade. Pensei: ‘não preciso ir tão longe para fazer o mesmo aqui’. Depois que descobri ser possível fazer café de bebida com conilon, não penso em outra coisa. E o projeto ‘Dom Helder’ me fez sonhar”, diz a cafeicultora.

Heliamar diz gostar de aprender e compartilhar conhecimento com outras mulheres. Uma revolução feminina na cafeicultura está por vir. E onde a “água é doce”, cafés adocicados naturalmente poderão virar notícia.


Multiplicação dos peixes na ‘Cidade da Paz’

A divisa do noroeste do Espírito Santo com Minas é tão sutil que só nos damos conta ao avistar, na rodovia com sentido a Governador Valadares, o monumento que lembra a Guerra do Contestado.

Entre as décadas de 1940 e 1960, a região foi alvo de disputas sangrentas entre mineiros e capixabas. É por isto que tem Mantena, em Minas, e Mantenópolis, no Espírito Santo. E agora nosso destino, Mantenópolis, é conhecido como “Cidade da Paz”.

No Córrego das Flores, vive a piscicultora Valdineia Almeida da Silva (33). Casada, mãe de dois filhos e criada na roça, ela exala felicidade por ser mulher rural. Um sentimento potencializado ainda mais depois de atendida pelo Projeto Dom Helder Câmara para tocar a criação de peixes na propriedade.

O sítio pertence à família e já tinha um pesqueiro pequeno para consumo próprio. Com o recurso, a piscicultora contratou o serviço de retroescavadeira para aumentar o açude e comprou sementes e adubo para incrementar uma horta que já fornecia para a merenda escolar da rede municipal. A entrega das hortaliças ficou comprometida com a suspensão das aulas.

Valdineia diz que é uma grande satisfação para ela e a família ver o pesqueiro cheio e as pessoas passando curiosas na estrada. Na cidade não tem peixaria.

Agora tem mineiro, tem pacu, tem tilápia… Na puxada de rede da Semana Santa, o pesqueiro se esvaziou para o bolso encher. O feriado bateu recorde de vendas de peixe fresco por meio do WhatsApp. Só de tilápia foram 76 kg.

“O celular ajudou muito na pandemia, porque é difícil ficar sem trabalhar com o povo, que quer tocar na mercadoria. Mesmo tirando foto, o povo quer ver se o peixe está com o olho e a escama brilhando”.

A água do lago é utilizada ainda para irrigar café e hortaliças e passou a ser uma forma de acumular a água da chuva.

“A assistência do Incaper foi espetacular. Só tenho que agradecer ao Claudinei (o Silva, extensionista do instituto). Antes do programa, não tinha este tipo de atendimento, os técnicos não tinham diálogo comigo, mesmo eu tendo a horta”, conta Valdineia.

A piscicultora afirma que foi a única a escolher a atividade e não se arrepende, pois sente inspirar outras iniciativas femininas.

“Gosto do que faço, faço com amor. Sou muito feliz de ser selecionada dentre 22 pessoas candidatas e espero que o projeto ajude outras mulheres. Não conheci Dom Helder, mas aqui está um pouco dele”, afirma.

“Toda conquista me deixa fortalecida e me possibilita ir além. Fico feliz de participar porque minha mãe não teve a mesma oportunidade. O apoio me impulsiona mais porque, se eu consegui, outras mulheres vão conseguir. Você passa a ser o espelho na piscicultura local. E o ‘Dom Helder’ me deu essa oportunidade e vou abraçá-la de coração”, finaliza.


O Projeto Dom Helder Câmara 

Iniciado em 2001, é um programa de ações referenciais de combate à pobreza e apoio ao desenvolvimento rural sustentável na região do semiárido brasileiro.

Atualmente, o programa atua em 913 municípios em 11 estados da federação com a expectativa de prestar serviços de assistência técnica e extensão rural por cerca de três anos a aproximadamente 60 mil famílias. As ações beneficiam diretamente em torno de 126 mil pessoas. Um dos requisitos é estar inscrita no CadÚnico.

O projeto é desenvolvido pelo Ministério da Agricultura (Mapa), em conjunto com a Anater e várias instituições que prestam serviços de assistência técnica e extensão rural, por meio de um acordo de empréstimo firmado entre o governo brasileiro e o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida).

No Espírito Santo (mapa abaixo) são 1.577 famílias atendidas, beneficiando diretamente 4.051 pessoas. Inserido no projeto em 2016, devido à sua região semiárida, o Estado iniciou as atividades em 2017. Ao todo foram beneficiadas famílias de 28 municípios localizados na área de abrangência da Sudene.

Das 1.577 famílias beneficiadas no Espírito Santo, 985 são atendidas pelo Incaper. Dessas, 363 obtiveram direito a um fomento para implantar o projeto produtivo no valor de R$ 2.400,00 cada, movimentando um total R$ 871.200,00.

 

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