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Geral

Do diagnóstico ao tratamento, os desafios do autismo

por Assessoria de imprensa Ales

em 03/04/2022 às 19h51

13 min de leitura

“Eu sempre soube que aquela criança que não me olhava nos olhos, cujo olhar parecia que me atravessava, tinha alguma coisa. A primeira coisa que pensei foi que ele era surdo, já que eu o chamava e ele não atendia. Tive o diagnóstico de autismo em um janeiro chuvoso quando ele tinha 3 anos e 4 meses”. Esse é o relato de Giovana de Oliveira Ribeiro, mãe de Ícaro, de 13 anos, que tem o autismo severo.

Pollyana Paraguassú, presidente da Associação dos Amigos dos Autistas do Espírito Santo (Amaes), viveu uma realidade parecida. “Meu filho tem 18 anos e descobri com 2 anos e 3 meses. Achei que ele era surdo“, conta.

Histórias como as de Giovanna e Pollyana e de outras mães e pais de autistas revelam a necessidade de atenção aos sinais para que seja possível o diagnóstico. Para difundir informações à população, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu em 2007 o Dia Mundial de Conscientização do Autismo, celebrado em 2 de abril.

Fotomontagem com imagens de Giovana, Ícaro, Pollyana e Felipe

Neurodesenvolvimento

A psiquiatra Fernanda Mappa explica que o autismo é um transtorno do neurodesenvolvimento. A criança já nasce com essa condição e manifesta os atrasos ao longo de seu desenvolvimento.

“De forma simplificada, o autismo se caracteriza por comprometimento da expressão afetiva, da interação social e da linguagem, bem como pela presença de comportamentos e/ou interesses repetitivos ou restritos. Além de prejuízo na esfera socioemocional, pode haver também atraso no desenvolvimento cognitivo, ou seja, deficiência intelectual (ou retardo mental)”, afirma a psiquiatra.

Atualmente não existe, no Brasil, monitoramento do número de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Por isso, utiliza-se a prevalência do Centro de Controle de Doenças e Prevenção do governo dos Estados Unidos (Centers for Disease Control – CDC) para calcular a estimativa de acordo com a população do país. Dados americanos de estudo publicado em 2021 pelo CDC dão conta de uma frequência de um caso a cada 44 crianças de 8 anos.

No Brasil, o Censo de 2022, em razão da determinação da Lei 13.861/2019, incluirá perguntas sobre o TEA e o Brasil poderá então calcular seus próprios dados.

Primeiros sinais

Fernanda Mappa relata que o que mais motiva os pais a buscarem um serviço de saúde em busca de respostas é o atraso na fala, a dificuldade de interação social com crianças da mesma idade e a presença de estereotipias (movimentos repetitivos principalmente de balançar as mãos em situações de alegria ou mesmo de irritabilidade).

A psiquiatra lista alguns sinais que devem ligar o alerta para os pais:

  1. Pouco contato visual. Na amamentação, por exemplo, não acontece aquela troca de carinhos esperada e a troca de olhares.
  2. Ausência do sorriso social, esperado entre 2 e 3 meses em resposta a algo, como ver o rosto da mãe.
  3. Não atender ao ser chamado pelo nome e apresentar certa indiferença a sons, ruídos ou vozes conhecidas.
  4. Pouco ou nenhum interesse social. É o caso de bebê que se interessa mais por objetos, como o cabelo da mãe, do que por pessoas.
  5. Pouca ou nenhuma vocalização. Com 3-4 meses, os bebês emitem sons sem grandes significados, mas entre 6-9 meses, começam os balbucios “mama”, “papa”. Além do atraso na fala, pode haver a regressão da linguagem.
  6. Atraso no desenvolvimento da atenção compartilhada, que é a expressão das descobertas pelo olhar, gestos e emoções.
  7. Brincar sem dar função a um brinquedo (prestar mais atenção na rodinha do que no carrinho, por exemplo).
  8. Dificuldade no processo de introdução alimentar.
  9. Alterações no sono.

Diagnóstico

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Não há ainda nenhum marcador biológico, exame de imagem ou genético capaz de, isoladamente, determinar se alguém tem ou não de TEA. “O diagnóstico é clínico, ou seja, baseado em entrevista com os pais, observação do comportamento da criança e descrição de seu exame psíquico”, esclarece Fernanda Mappa.

Para crianças inseridas em escolas, segundo a psiquiatra, um bom relatório escolar oferece informações preciosas. “Vídeos e fotos trazidos pela família também nos servirão de auxílio”, aponta.

Foto e citação de Fernanda Mappa afirmando que o diagnóstico é clínico

Apesar de não haver um tempo definido para se fechar o diagnóstico, Fernanda afirma que é mais comum a partir dos 2 anos de idade, devido à falta de uma “fala útil e compatível” com a idade, bem como com outros atrasos que podem estar associados.

“A maioria das crianças manifesta atrasos no desenvolvimento entre os 12 e 24 meses. Atualmente, preza-se mais pelo conceito de intervenção precoce, ou seja, diante de atrasos nos marcos de desenvolvimento (neurodesenvolvimento) que a criança deveria alcançar e não alcançou, iniciam-se as intervenções terapêuticas mesmo sem a conclusão quanto ao diagnóstico”, explica a médica.

Níveis

Segundo o DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), da  Associação Americana de Psiquiatria, há três níveis do TEA: leve, moderado e severo. A classificação leva em conta a quantidade de suporte que a pessoa precisa para exercer suas atividades cotidianas e não os sintomas em si.

A pessoa com autismo nível 1 pode apresentar dificuldades em situações sociais, comportamentos restritivos e repetitivos, mas requerem apenas um auxílio mínimo para realizar suas atividades. “Podem ser capazes de se comunicar verbalmente e de ter alguns relacionamentos. No entanto, podem ter dificuldade em manter uma conversa, assim como para fazer e manter amigos. Tendem a preferir seguir rotinas estabelecidas e se sentirem desconfortáveis com mudanças”, pontua a especialista em psiquiatria infantil.

Já quem tem autismo moderado precisa de mais ajuda:  A psiquiatra destaca que elas podem ou não se comunicar verbalmente e, se o fizerem, suas conversas podem ser curtas ou apenas sobre tópicos específicos. “Podem não olhar para alguém que está falando com elas, não fazer muito contato visual, não conseguir expressar emoções pela fala ou por expressões faciais”, exemplifica Fernanda, acrescentando que os comportamentos restritivos e repetitivos e o apego à rotina ocorrem em gravidade maior.

Arte sobre os níveis do autismo, leve, moderado e severo

As pessoas com autismo severo, por sua vez, precisam de muito mais suporte. Elas apresentam dificuldade significativa na comunicação e nas habilidades sociais. “Muitos não falam ou não usam muitas palavras para se comunicar”, detalha Fernanda. Além disso, não lidam bem com eventos inesperados, podem ser excessivamente ou pouco sensíveis a determinados estímulos sensoriais e apresentam comportamentos restritivos e repetitivos, como balanço e ecolalia (repetição mecânica de sílabas, palavras ou frases já ouvidas).

Intervenções

Intervenções precoces e intensivas são eficazes a ponto de permitir mudança de nível dentro do espectro? Fernanda Mappa explica que essa possibilidade tem a ver com a plasticidade cerebral:

“Quanto antes são identificados os atrasos, melhor será para a criança. Um conceito importantíssimo é de plasticidade cerebral, que é a capacidade dos neurônios se transformarem e se reorganizarem de acordo com os diferentes estímulos que recebem. A intervenção precoce gera ganhos significativos e duradouros no desenvolvimento da criança. Mas isso acontece preferencialmente até os 5-6 anos de idade, fase da vida da criança conhecida como “janela de oportunidade”.

O acompanhamento requer uma equipe multiprofissional.“Poderá ser composta pelo médico psiquiatra da infância ou neurologista infantil, psicólogo, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional e psicopedagogo. Além da família que deverá ser ativa em todo processo de intervenções e de uma escola que promova a inclusão da criança”, destaca a psiquiatra.

O tratamento pode contemplar tanto medicações quanto terapias. Fernanda Mappa explica que cada criança vai requerer um planejamento de suas terapias, que será individualizado de acordo com suas necessidades. “Para esse planejamento ser preciso, é necessária a aplicação de testes e escalas, todas com validação e evidência científica, que definirão as habilidades daquela criança, bem como suas deficiências naquele momento”, ressalta.

Um menino em pé perto de mesa onde mulher sentada lhe dá um papel e outra em pé olha pra ele

Quanto à medicação, Fernanda explica que é restrita a casos em que a criança apresenta sintomas associados ou necessidade de tratamento de comorbidades como TDAH, ansiedade, transtorno opositor e desafiador. “Em crianças muito pequenas, o comportamento hipercinético, agitado e algumas vezes agressivo pode requerer intervenção medicamentosa bem como as alterações de sono que são muito comuns”, detalha a psiquiatra.

Terapias 

Helder Souza é psicólogo na Amaes e detalha como acontecem as terapias. Segundo ele, cada criança é como uma pedrinha bruta a ser lapidada. “Ela chega e não fala, não senta, não olha, não presta atenção em nada. A gente começa então trabalhando os pré-requisitos, que são o contato visual, a habilidade de apontar. Tudo bem humanizado, leve e como uma brincadeira. Buscamos também a substituição de comportamentos inadequados para adequados (…), podemos trabalhar até o ponto de o paciente começar a externar algumas palavras. Vamos trabalhar para dar função ao que ele está fazendo ”, descreve.

O psicólogo destaca que, organicamente, as pessoas com autismo são como qualquer outra. “Elas têm todos os sentimentos e desejos, mesmo que haja a dificuldade de externar. Por serem extremamente literais, quando expressam uma emoção, é sempre de forma muito honesta, muito verdadeira”, explica. Por isso, além do treino de habilidade cotidianas, é feito um trabalho de reconhecimento das emoções e dos sentimentos. “Buscamos ampliar o repertório sentimental e de todas as esferas de comportamento. Quanto mais repertório, melhor seu desenvolvimento, maior sua autonomia. Assim, chegamos ao propósito de qualquer intervenção terapêutica, que é o aumento da qualidade de vida”, conclui.

Foto de Helder Souza e aspas sobre a função das terapias em ampliar o repertório do autista

Ícaro, autista severo, aprendeu a ler e escrever na Amaes. “Esse é o hiperfoco dele. É a partir desse hiperfoco que se abre a possibilidade para desenvolver outras habilidades”, conta a mãe. Já Felipe, filho de Pollyana e autista moderado, desenvolveu a fala por meio da música. “Ele é fã da dupla sertaneja Simone e Simaria e já aprendeu muito com as letras das canções. Esses dias, até pediu sozinho comida em um aplicativo de celular.”

Dificuldades

Apesar de fundamentais, os tratamentos que estimulam o desenvolvimento da pessoa com autismo não são fáceis de serem encontrados, segundo  relatam os familiares: Giovana conta que seu filho já ficou sem suporte por diversas vezes. “Tem ano que Ícaro não é assistido por não se encaixar nas regras do projeto (da Amaes)”. Pollyana lamenta a ruptura no atendimento. “É um divisor de águas negativo. Há crianças que regridem (…). Tivemos casos na pandemia (…) A quebra de rotina estressa a pessoa com autismo e ela não sabe expressar isso.”

A presidente da associação explica ainda que, para otimizar os recursos, os atendimentos são organizados por meio de projetos. “Cada um tem seu critério para participação. Há projeto cujas vagas são 100% voltadas aos munícipes de Vitória, outros são só para pessoas de 6 a 18 anos”, exemplifica Pollyana. A falta de recursos, segundo ela, impacta na oferta de serviços: “Atendemos a 350 famílias. Se eu for oferecer tudo conforme a real necessidade de cada um, conseguiria atender a 150, 180 famílias.”

Foto de Pollyana Paraguassú com aspas sobre a necessidade de continuidade das políticas públicas relativas aos autistas

“A gente vive com uma cuia na mão, pedindo. Recebemos um recurso continuado do governo, mas a assistência social e saúde nós não temos. A Amaes é mantida por emendas parlamentares e por parceiros privados (…) O problema é que a intervenção precoce não é vista como investimento. Depois, será mais gente precisando de benefícios. Não todos, mas muitos poderiam trabalhar se tivessem suporte. Não precisamos de política de governo, que muda conforme quem está no poder. Precisamos de continuidade, de políticas de Estado”, opina.

Preconceitos

Giovana e Pollyana contam que preferem identificar a condição dos filhos quando saem com eles para evitar olhares de julgamento. Felipe, filho de Polyanna, usa o colar de girassol, que serve para identificar transtornos não visíveis. “Meu filho não fica de máscara. Na pandemia, peguei um táxi com ele. Avisei o motorista que meu filho era autista. Ele estava com o colar. Mesmo assim, ele me denunciou”, conta.

Segundo as mães, o preconceito aumenta na medida em que a pessoa com autismo cresce. “O que era bonitinho com 5 anos não é aceito para um rapaz de 18. Ao atingir a maioridade, acontece uma verdadeira morte social”, diz Pollyana. Giovana concorda: “Quando Ícaro era pequeno e dava pulos na rua, todo mundo achava engraçadinho. Agora ele tem 13 anos e ninguém acha mais aceitável. As pessoas olham com preconceito”, aponta.

Iniciativas na Ales

No Espírito Santo, a Lei 11.488/2021, do deputado Capitão Assumção (PL), reconhece o cordão de girassol como instrumento auxiliar de orientação para identificação de pessoas com deficiências ocultas. Confira no vídeo:

No ano passado também foi aprovada a Lei 11.273/2021, que institui no calendário oficial do Espírito Santo o Abril Azul – mês de conscientização e valorização da pessoa com autismo. A iniciativa foi deputado Torino Marques, autor também da Lei 11.341/2020, que institui o prazo de cinco de validade para laudo e perícia médica que atestam o transtorno.

No momento, tramitam na Ales diversas projetos de lei em defesa dos autistas. Entre elas, propostas para tornar indeterminado o prazo de validade de laudos médicos, uma das reivindicações das famílias. Há, também, matérias que buscam garantir atendimento clínico ou médico e promover a inclusão em escolas, no mercado de trabalho e na cultura. É possível ver a lista das proposições, consultando o processo legislativo (resultados da busca pela palavra autismo e busca pela palavra autista).

Onde buscar ajuda

Segundo a Secretaria de Estado de Saúde (Sesa), os atendimentos são prestados pelas unidades da Apae e da Associação Pestalozzi do Espírito Santo.

De acordo com as diretrizes e regulamentações do Ministério da Saúde, o cuidado a pessoas com TEA e suas famílias se faz pelas seguintes redes:

Tanto na RCPD quanto na RAPS, o cuidado com a TEA pode ser realizado desde a atenção primária, passando pelos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e, quando necessário, pelos serviços de alta complexidade, como pronto-socorro e leitos de saúde mental nos hospitais gerais, cabendo a cada nível de atenção e ações específicas.

No campo da saúde mental, o Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi), que é o equipamento privilegiado para a atenção à criança com autismo no âmbito do SUS, embora não seja exclusivo para esse fim.

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