Santana e Santa Olímpia: a herança italiana viva em Piracicaba (SP)
Colônias de imigrantes trentinos e tiroleses em Piracicaba celebram 150 anos de história italiana com a preservação de tradições, a produção de vinhos artesanais e o crescente agroturismo que mantém viva a cultura dos antepassados
por Leandro Fidelis
em 02/10/2024 às 5h00
13 min de leitura
Em meio às vastas plantações de cana-de-açúcar que dominam a paisagem rural de Piracicaba (SP), dois pequenos bairros rurais, Santana e Santa Olímpia, emergem como verdadeiros pedaços da Itália no coração do Brasil. Colonizadas por imigrantes trentinos e tiroleses no final do século 19, as comunidades, situadas a 20 km do centro da cidade, não apenas preservaram, mas também cultivaram com fervor as tradições e os costumes herdados dos antepassados originários do Trentino Alto-Ádige, parte do antigo Tirol, no extremo norte da Itália. A região pertencia ao Império Austro-Húngaro antes de ser anexada ao país após a Primeira Guerra Mundial.
Distantes apenas 2 km, essas comunidades são mais do que simples agrupamentos de descendentes. Elas funcionam como verdadeiros guardiões da cultura tirolesa em terras brasileiras, especialmente no Sudeste. Ao percorrer as ruas de Santana e Santa Olímpia, é fácil se sentir transportado para uma vila no Norte da Itália, onde as construções, os modos de vida e até mesmo a língua falada entre os mais velhos ecoam um passado que se recusa a desvanecer.
Em um momento em que o mundo globalizado ameaça a uniformidade cultural, os bairros de Piracicaba resistem, oferecendo uma visão singular de como as tradições podem prosperar quando são sustentadas pelo orgulho e pela memória coletiva
Com a comemoração dos 150 anos da imigração italiana no Brasil em 2024, a importância dessas colônias ganha ainda mais destaque. As festividades ao longo do ano renovam o compromisso das novas gerações com a preservação dessa herança. Em Santana e Santa Olímpia, a cultura italiana não é apenas celebrada, mas vivida diariamente, em cada detalhe, desde as práticas agrícolas, passando pelos costumes e tradições que unem as famílias e fortalecem a comunidade.
“A celebração dos 150 anos influenciou as atividades do Circolo Trentino na preservação da cultura e dos costumes trazidos pelos nossos antepassados. Além de fornecermos espaço para atividades como o curso de italiano, participamos de todos os eventos culturais do bairro como a ‘Cucagna’, no carnaval, do tingimento de ovos na páscoa, almoços e jantares italianos, além da Festa da Polenta. O principal objetivo é a manutenção da nossa cultura,” ressalta Tatiane Dourado, presidente do Circolo Trentino di Santa Olímpia.
O vinho que une e revitaliza
Na comunidade de Santana, a Festa do Vinho é mais do que um evento. Organizada pela Associação de Moradores e pelo Circolo Trentino di Piracicaba sempre em junho, a Festa se tornou ponto de encontro para descendentes de imigrantes e turistas que buscam uma conexão autêntica com a cultura italiana.
A produção da bebida é terceirizada junto à Cooperativa dos Produtores de Uva e Vinho de Santana e Santa Olímpia (Coopervin). A matéria-prima, que no passado era comum na pequena vila, hoje é importada do Rio Grande do Sul. Atualmente, a cooperativa produz 20 mil litros por ano, sendo que 80% são direcionados para a festividade.
O presidente da Coopervin, André Stenico, ressalta a importância dessa celebração para a manutenção das tradições locais. “Os plantios de uvas sempre estiveram presentes no bairro, enquanto a fabricação de vinhos sempre deu o tom das festas, com danças e cantorias regadas pelo vinho dos ‘nonos’. A Coopervin busca manter essas tradições vivas, mesmo com as modernizações que o tempo impôs”.
A Coopervin não apenas comanda a produção do vinho da Festa em Santana, como também é guardiã das tradições associadas a ele. A vinicultura, que outrora foi uma prática caseira e rústica, hoje é conduzida com o apoio de técnicos e enólogos, garantindo que a qualidade dos vinhos atenda aos paladares mais exigentes, sem perder o toque artesanal que é marca registrada da produção local
A união de pessoas é uma característica forte na cultura do imigrante italiano, mas a Coopervin é a única cooperativa em atividade em Santana. Segundo Stenico, havia outra cooperativa de leite, mas a migração da mão de obra jovem para empresas de ramos como metalurgia, saúde, transporte, entre outros, comprometeu a sucessão familiar na agricultura. “Há tempos as lavouras foram vendidas ou arrendadas”, diz.
Um cenário que vem mudando com o crescimento do agroturismo na região. O presidente da Coopervin conta que, após a pandemia, uma lacuna se abriu na organização da cooperativa, “que praticamente se sustentava das vendas dos vinhos na principal festa de Santana”. Após o surto, começaram a surgir novos estabelecimentos em Santana e Santa Olímpia (*Saiba mais adiante), atraindo turistas e novos clientes para os vinhos da cooperativa. “É de total importância a existência desta teia comercial”, observa Stenico. Além desse mercado, foi retomada a produção local de uva para atender uma demanda de vinhos finos.
Agroturismo: a tradição como motor econômico
O crescimento do agroturismo tem sido uma grande novidade nas comunidades de Santana e Santa Olímpia. Empreendimentos como a vinícola “Alma da Videira”, fundada por Jonas Vasca e Edenilson Rivabene, em Santana, são exemplos desse movimento. Com o intuito de resgatar a prática artesanal da produção de vinho, eles criaram uma vinícola que não apenas produz bebidas de alta qualidade, mas também oferece aos visitantes uma experiência imersiva na cultura local.
A tradição de produzir vinho artesanal foi trazida ao Brasil pelos antepassados italianos da família Vasca, sendo passada de geração em geração. Inspirado pela convivência com seus “nonos”, Jonas começou a produzir vinhos de forma rústica para manter viva essa herança familiar.
Com o tempo, ele se uniu a outros moradores, incluindo seu atual sócio, Edenilson Rivabene, e juntos iniciaram o plantio de uvas e a produção de vinho em pequena escala. À medida que a quantidade de uvas aumentava, surgiu a ideia de comercializar os vinhos, inicialmente para familiares e amigos. Com o objetivo de profissionalizar o negócio, a dupla passou a estudar vinicultura e a participar de eventos do setor, consolidando o que inicialmente foi a Vinícola Rivabene & Vasca, e que, posteriormente, deu origem à Vinícola Alma da Videira.
A vinícola honra a tradição dos imigrantes italianos que valorizavam a produção própria de vinho, com um dos seus produtos mais destacados sendo o “Vinho do Nono”, um vinho de mesa feito com uvas coloniais tipo bordô. Embora o processo tenha se modernizado com o uso de novas ferramentas e maquinários, a essência da produção artesanal foi preservada. Com mais de 150 anos de história, a influência dos antepassados é sentida na forte presença do vinho em celebrações da comunidade, onde a busca por vinhos tradicionais é elevada, tanto pelo valor cultural quanto pela conexão com as raízes históricas.
A “Alma da Videira” é uma verdadeira experiência sensorial e cultural. Os visitantes são convidados a conhecer cada etapa da produção do vinho, desde o cultivo das uvas até a degustação final. Além disso, a vinícola mantém uma coleção de tratores antigos. “O turismo relacionado à cultura local movimenta o bairro e fornece aos visitantes uma experiência única de uma colônia italiana, que manteve suas tradições, a essência dos nossos ‘nonos’ viva no bairro”, destaca Rivabene.
Em Santa Olímpia, o engenheiro mecatrônico Ivan Correr é um agitador da cultura tirolesa. Na tradicional Festa da Polenta do bairro, ele encarna o tirolês, desfilando em trajes típicos durante o evento acompanhado da mulher e dos filhos igualmente caracterizados. Em 2010, ele inaugurou o charmoso Café Tirol, um dos empreendimentos pioneiros do bairro e que reflete o crescimento do agroturismo na região. Toda a decoração, a ambientação e o cardápio remetem à cultura tirolesa local. Na parte interna, são encontrados fotos, documentos e objetos que contam a história da fundação de Santa Olímpia.
“O Café Tirol surgiu com o objetivo de preservar a cultura tirolesa de língua italiana (Trentino) dos fundadores da Colônia Tirolesa de Piracicaba. Em uma data tão expressiva, como os 150 anos da imigração italiana, visitantes e turistas buscam sempre opções que remetem a esta comemoração e percebemos isso em nosso espaço”, afirma Correr.
Com relação a viver do turismo rural, para o descendente de tiroleses, “preservar a cultura é um sentimento inexplicável, visto que é uma possibilidade de propagar, preservar e manter a cultura e tradição dos fundadores da Colônia Tirolesa de Piracicaba!”.
O agroturismo emerge como um motor econômico capaz de transformar a cultura em uma fonte sustentável de renda, garantindo que as tradições locais continuem vivas e relevantes
No mesmo bairro, a Osteria Tirolesa surge como outra homenagem aos imigrantes. O empreendedor Thiago Forti, das famílias Degasperi e Forti, inspirado pelas histórias dos antepassados que cruzaram o oceano em busca de novas oportunidades, decidiu dar vida a esse capítulo da história com o lançamento do empreendimento. A Osteria celebra o legado da imigração, entrelaçando as influências austríacas, italianas e alemãs no mesmo ambiente.
Ao entrar no local, os visitantes são envolvidos por uma atmosfera que vai além de uma simples refeição: é uma experiência que celebra as raízes e a união familiar. A produção artesanal de cervejas e vinhos é um tributo à autenticidade e ao espírito empreendedor dos imigrantes, refletindo uma história de amor à terra e ao cultivo.
A culinária típica recria os sabores que os “nonos” trouxeram consigo, com pratos que introduzem propostas inovadoras, sugeridas com carinho por quem serve, em uma constante homenagem à criatividade dos tiroleses.
“Tanto nós quanto outros estabelecimentos aqui da colônia trabalhamos com vinhos de fabricação própria, rotas e passeios para divulgação da nossa cultura, seja por meio da gastronomia ou da história”, explica Forti.
A experiência na Osteria Tirolesa se estende à encantadora varanda com pergolado, que se abre para um bosque, proporcionando uma sensação de paz que remete à serenidade das pequenas cidades alpinas. Durante o happy hour, os visitantes são convidados a se desconectar da agitação do dia a dia, como se fossem transportados para uma cena de filme italiano. Cada prato e cada gole de cerveja artesanal “Stella Alpina” são uma celebração da coragem e da tradição que continuam a florescer, preservando e elevando a rica herança dos imigrantes em Santa Olímpia.
Gastronomia que transmite memórias
A culinária é outro pilar fundamental na preservação cultural dessas comunidades. Bruna Mosna Vitti, proprietária da Mamma Mia Delícias Típicas, em Santana, compartilha o compromisso de manter viva a tradição através da gastronomia. “Nossa maior alegria é compartilhar um pouco desse amor pela tradição e proporcionar uma experiência aos visitantes onde se sintam acolhidos como na casa da ‘nona’, desfrutando de muita comida boa, além da paz do interior, em meio a muita natureza”, diz Bruna.
No Mamma Mia, os visitantes são recebidos com um café colonial servido debaixo dos parreirais, onde delícias como a polenta brustolada, o strudel de maçã e o pão caseiro são preparadas com receitas centenárias.
A Mamma Mia se destaca não apenas pela qualidade da comida, mas pelo ambiente que recria a sensação de estar em uma autêntica casa italiana. As receitas passadas de geração em geração são preparadas com o mesmo cuidado e amor que se encontraria em uma cozinha familiar, garantindo que cada visitante não apenas saboreie uma refeição, mas também experimente a rica história cultural que ela representa.
“As pessoas não vêm apenas tomar um simples café colonial, mas também viver uma experiência completa cheia de história, tradição, fé e muito amor à família, nossa maior riqueza”, conta Bruna.
O turismo rural e a busca por memórias afetivas têm crescido. E para os descendentes de italianos, preservar a cultura familiar é essencial. Estabelecimentos típicos, festas e a celebração dos 150 anos da imigração mantêm viva essa herança na zona rural de Piracicaba. “Não conseguimos imaginar a nossa vida fora da colônia, é a nossa maior paixão. Compartilhar um pouco das nossas tradições com os visitantes é muito gratificante e nossa maior felicidade. Temos muito orgulho da nossa história e de quem somos”, finaliza Bruna.
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