Resiliência e ação

Ecos da seca: o que uma das piores estiagens do mundo ensinou ao ES

Foto ilustrativa

“Haverá ainda, no mundo, coisas tão simples e tão puras como a água bebida na concha das mãos?”

A reflexão poética de Mario Quintana leva-nos a pensar nas conexões que perdemos com a natureza e como a correria do dia a dia nos impede de desfrutar os pequenos prazeres. Num tom mais grave, alerta-nos sobre a perspectiva da ausência. O que seria do mundo se a água, fonte da vida, se tornasse escassa? É uma pergunta urgente, dado o aumento da frequência de eventos extremos de seca mundo afora.

A Organização das Nações Unidas (ONU) confirmou que 2024 foi o ano mais quente já registrado, com temperaturas médias 1,55°C acima dos níveis pré-industriais. Essa elevação térmica, combinada com a escassez de chuvas, configura uma tempestade perfeita que se manifesta em estiagens severas em diversas partes do planeta.

Um panorama recente do Monitor de Secas da Agência Nacional de Águas (ANA), referente a fevereiro de 2025, revela a extensão do problema no Brasil. Apenas áreas isoladas do Sul, Nordeste e Norte do país foram consideradas livres de seca relativa, enquanto o restante do território nacional enfrentava condições que variavam de seca fraca a grave.

O cenário brasileiro reflete uma tendência global apontada por um estudo publicado em janeiro de 2025 na revista Science. Pesquisadores analisaram dados entre 1982 e 2018 e identificaram 13 mil eventos de estiagem com duração mínima de dois anos em todo o mundo.

“As secas representam uma ameaça crescente com impactos sociais e ecológicos severos, desde a escassez de água potável e quebras de safra até incêndios florestais e a degradação de ecossistemas inteiros”, alerta o estudo, enfatizando a intensificação e o prolongamento das estiagens em escala global.

A pesquisa da Science trouxe à luz dois eventos de seca no Brasil que se destacaram entre os mais severos do planeta. A estiagem que assolou a Amazônia Sul-Ocidental entre 2010 e 2018, abrangendo partes do Acre, Amazonas, Rondônia e Mato Grosso, classificou-se como a sétima mais grave em termos de intensidade.

O impacto da estiagem no leste do Brasil, que inclui Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo, foi igualmente significativo. A pesquisa revelou que a seca que atingiu essas localidades entre os anos de 2014 e 2017 ficou em nono lugar entre as dez mais severas do mundo no período analisado.

Os anos que não terminaram

No Espírito Santo, a estiagem foi considerada uma das piores da história. Só em 2015, a produção de conilon caiu 50%. No mesmo período, o prejuízo estimado para os produtores agrícolas foi de mais de R$ 1,7 bilhão. Naquele cenário, a Agência Estadual de Recursos Hídricos (Agerh) editou as Resoluções 005 e 006/2015. As regras eram claras: era momento de ficarmos alertas e a prioridade da água era para matar a sede da população e dos animais.

As regiões Norte e Noroeste do Estado foram as mais afetadas pela estiagem. O antes caudaloso Rio Doce quase sumiu e grandes áreas com areia e sedimentos ficaram expostas, com apenas alguns canais estreitos de água serpenteando pela paisagem. Pinheiros, Alto Rio Novo, São Roque do Canaã, Vila Pavão e parte de Conceição da Barra, Barra de São Francisco, Ecoporanga, Fundão e Santa Teresa só poderiam captar água dos minguados rios para dessedentação.

Uma força-tarefa foi criada para fiscalizar a utilização da água em todas as bacias hidrográficas. Formada por representantes dos Comitês de Bacias, da Agerh, do Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal (Idaf), do Instituto Estadual de Meio Ambiente (Iema), da Polícia Militar e de prefeituras, a força-tarefa verificava in loco se as resoluções da Agerh estavam sendo cumpridas. Em caso de desrespeito, os infratores pagariam multas de até R$ 268 mil.

A secura instalou-se em todo lugar. No distrito de Imburana, em Ecoporanga, e em Cidade Nova da Serra, em Fundão, 100% do fornecimento para a população foi feito por meio de carro-pipa. Na Grande Vitória, a vazão dos rios Santa Maria da Vitória e Jucu ainda era suficiente para abastecer a população, mas os níveis ficavam cada vez mais baixos e preocupantes.

O alívio caiu do céu; a solução, não!

Somente no final de 2017 e início de 2018 as condições foram atenuadas devido às chuvas acima da média na maior parte das áreas mais críticas do Espírito Santo. Se o alívio literalmente caiu do céu, o trabalho para mitigar impactos futuros estava só começando. No Estado, foi implantado o Programa Águas Capixabas com uma série de medidas para conservação e revitalização de bacias e corpos hídricos.

Com foco prioritário em áreas de agricultura familiar, foi feito o aporte de R$ 12 milhões para investimentos na implantação de estruturas para captação e armazenamento de água, como barraginhas e cisternas, além da adoção de biodigestores para melhorar as condições de saneamento ambiental. A meta do programa, que está em andamento, é elaborar projetos e implantar cerca de 26.887 estruturas em todo o Espírito Santo, beneficiando aproximadamente 4.300 propriedades rurais.

“Disponibilizamos uma linha de financiamento subsidiado para que produtores possam fazer barragens com custo baixo. É um programa muito audacioso e necessário. Não estamos afastados de sofrer uma nova estiagem prolongada, mas vamos enfrentar com menos dificuldade do que foi no passado”, disse o governador do Espírito Santo, Renato Casagrande, em um evento alusivo ao Dia Mundial da Água, comemorado em 22 de março.

A indústria também está incluída no pacote preventivo. Em abril deste ano, a Vale e o consórcio Águas de Reúso de Vitória, subconcessionária da Companhia Espírito-santense de Saneamento (Cesan), assinaram um Memorando de Entendimentos (MoU) para reciclagem da água proveniente do tratamento de esgoto sanitário da Grande Vitória. O material será utilizado na parte operacional em Tubarão, em Vitória.

Resiliência, crédito e trabalho

André Pagoto é filho de Maria de Lourdes Reboli Pagoto e Sebastião Bejamim Pagoto. Ele gerencia a propriedade rural da família, localizada em Santo Isidoro, Tiradentes, Rio Bananal. As terras foram compradas em 1976 por Sebastião. Até a década de 1990, a produção era voltada para o café arábica e o gado. Depois, a família decidiu migrar para o café conilon.

Em 2004, por meio do crédito rural do Banco do Nordeste (BNB), começaram a investir em irrigação, mas não na fonte de água. “Ainda fazíamos a captação direto no rio. Não tínhamos vazão para aumentar a área irrigada e, nos meses de estiagem, ficávamos sem água”.

Sem reservas ou barragens, a seca de 2014 a 2017 castigou a plantação. “Ficamos dois anos sem produção”, conta André, afirmando que acessaram o crédito rural na modalidade custeio para manter as atividades.

No auge da seca, o cenário era tão crítico que, segundo o superintendente estadual do BNB no Espírito Santo, Lourenzo de Oliveira, a instituição ofereceu linhas de crédito com juros mais baixos, renegociação de dívidas e bons descontos.

“Essas ações fizeram com que muitos produtores, principalmente familiares, não perdessem suas terras e pudessem continuar no campo”, explicou, informando que o banco financiou todos os projetos ligados ao café irrigado em sua área de atuação e tem linhas especiais para os seis municípios capixabas incluídos no semiárido.

Oliveira também destacou que a prevenção também é foco do banco, por meio da política de investimento em energia solar e a rigorosa observância da legislação ambiental em todos os financiamentos, abrangendo a proteção da mata ciliar e projetos de reflorestamento com linhas de crédito específicas. Adicionalmente, explicou, empresas com atuação na área ambiental contam com linhas diferenciadas.

Foi com foco na prevenção contra futuras secas que, em 2018, a família Pagoto decidiu investir em uma barragem e um açude. “Apresentamos a ideia ao BNB e construímos as estruturas. Hoje, temos um sistema de irrigação excelente, com água boa, e 90% da propriedade é atendida, podendo chegar a 100%, se quisermos. Ano passado, houve um período de estiagem prolongado e não registramos impacto significativo nas lavouras”, contou André.

Vozes da seca

Foto: arquivo pessoal

Luzenir Mattedi

“Meu nome é Luzenir Mattedi e, junto com minha esposa, Isabel Condi Mattedi, e o restante da minha família, trabalhamos na roça aqui no interior de Rio Bananal. Estou falando especificamente de Córrego Mattedi e Jacarandá, no interior do município. A vida toda plantamos café conilon. A pimenta, plantamos de uns dez anos para cá, mas o café vem de muito tempo, desde o meu avô, que passou para o meu pai e para mim e meus irmãos. Hoje, estamos passando esse conhecimento para nossos filhos.

Lembro-me bem daquela época. Tínhamos plantado café e pimenta. Mas a seca pegou tudo. Perto da plantação, só tínhamos uma represa, que secou. Fomos procurar um lugar para plantar e abrimos espaço perto da Lagoa das Palminhas, no Jacarandá. Na época, a Palminhas era o único lugar que tinha água. Temos outras áreas plantadas hoje, mas a nossa área mais forte é o Jacarandá mesmo, por causa da água.

Naquela época, o que estava plantado não dava pra salvar. Algumas lavouras de café nem conseguimos. Saímos de uma colheita boa, em 2013, e todo mundo estava achando que ia dar bastante café em 2014 em diante; aí veio a seca.

No Mattedi, o café ficou completamente seco, principalmente na área mais adensada, no morro. As plantas sofreram muito. E olha que plantamos o conilon, que dizem ser mais resistente. Nunca tínhamos visto uma coisa assim, nem meus tios, que já tinham mais de 70 anos na época, tinham presenciado algo parecido. Até água para beber ficou difícil de encontrar.

Mas, no fim das contas, foi um aprendizado. Hoje, graças a Deus, é tudo automatizado, tudo no gotejo. E foi com aquela seca que a gente aprendeu essa lição. Na época, apertou um pouco a situação financeira. Mas foi um aprendizado. Meus irmãos, antigamente, trabalhavam comigo aqui. Hoje, trabalho com meu filho, e meus irmãos estão em outra área, no interior de Linhares.

Conseguimos modernizar nossa irrigação. O Banco do Nordeste ajudou muito a gente. Pegamos um empréstimo e estamos terminando de pagar este ano. Na época, plantamos 35 mil pés de café e quatro mil pés de pimenta. Depois disso, fizemos mais financiamentos.

Vários vizinhos aqui no Jacarandá, uns 80% deles, também estão preparados. Investiram em irrigação, barraginhas, fertirrigação – jogamos adubo junto com a nutri irrigação. E a Lagoa das Palminhas dá conta da nossa necessidade; ela tem até 20 metros de profundidade”.

Vozes da seca

Foto: arquivo pessoal

Fabrício Carraretto Barreto

“Entre 2014 e 2017, vivemos uma situação muito crítica em uma de nossas propriedades, tanto por indisponibilidade de água quanto por restrição em períodos em que o Governo do Estado limitou os horários para irrigação. Na época, não tínhamos condições de aumentar a disponibilidade de água, uma vez que a perfuração de poços foi reduzida.

Naquele momento resolvemos, então, reduzir o tamanho da área plantada. Parte da lavoura não era tão produtiva, apesar de ainda ter viabilidade econômica. Mas pegamos as piores áreas e cortamos. Naquela época, chegamos a ficar com apenas 40% da área plantada. Depois da seca, em 2017, iniciamos a renovação das áreas, logo depois aumentamos o número de poços artesianos e, de lá para cá, renovamos 90% da área da propriedade.

Hoje, o que era o patinho feio do nosso negócio virou a menina dos olhos. Fizemos uma limonada com o limão e vivemos uma situação de conforto, tanto por termos aumentado a disponibilidade de água, quanto por renovar a lavoura em um momento oportuno.

Sempre nos lembramos de buscar e ter eficiência no uso da água. Já tínhamos, mas hoje estamos mais avançados no manejo da irrigação, com uso de tensiômetros digitais, para vermos a todo momento como está o nível de água na lavoura. Isso facilita o uso racional da água”.

A próxima grande estiagem já tem data para chegar

Apesar da previsão otimista de uma década com clima estável e chuvas bem distribuídas, o meteorologista Luiz Carlos Molion fez um alerta para o futuro: uma seca severa deverá atingir o Brasil entre 2034 e 2035. A previsão, feita em abril, em uma postagem nas redes sociais, compara o evento climático aos períodos de estiagem intensa de 2014/2017 e de 1987/1988, anos de super El Niños. “Preparem-se, a próxima grande seca será entre 2034 e 2035”, enfatizou Molion, baseando sua previsão na ocorrência do fenômeno de aquecimento anormal das águas do Pacífico no período.

Segundo o meteorologista, os próximos dez anos trarão um clima dentro da média, com precipitações regulares que beneficiarão a agricultura. “Este ano já será muito bom, de chuva bem distribuída. A tendência de longo prazo é de que, nos próximos dez anos, não tenhamos eventos extremos, ou seja, não teremos seca severa e possivelmente nenhum ano extremamente chuvoso. Serão anos dentro da média, chovendo um pouco mais ou menos”, explicou.

No entanto, a janela de clima favorável antecede um período crítico de estiagem. “O próximo El Niño forte, que fará uma seca severa, eu estimo que seja em 2034 ou 2035, algo semelhante a 2015 e 2016 e 1987 e 1988”, detalhou Molion, sublinhando a necessidade de preparação para enfrentar os impactos dessa futura seca.

Sobre o autor Fernanda Zandonadi Desde 2001, Fernanda Zandonadi atua como jornalista, destacando-se pelo alto profissionalismo e pela excelência na escrita de suas reportagens especiais. Tem um conhecimento aprofundado em agronegócio, cooperativismo e economia, com a habilidade de traduzir temas complexos em textos de grande impacto e relevância. Seu rigor e qualidade na apuração e narração de histórias do setor garantiram que seu trabalho fosse constantemente reconhecido pela crítica especializada, o que a levou a conquistar múltiplas distinções e reconhecimentos em premiações regionais e nacionais de jornalismo. Ver mais conteúdos