Reportagem Especial

Escola Família Agrícola: made in Espírito Santo

Pioneiro na concepção das Escolas Família Agrícola, por influência de um padre italiano, o Espírito Santo se tornou referência e inspirou a criação do modelo em todo Brasil

por Rosimeri Ronquetti

em 19/06/2024 às 5h00

9 min de leitura

Foto: reprodução Facebook

Na França dos anos 1930, a revolta de um grupo de estudantes insatisfeitos com a saída de jovens do meio rural para estudar nas escolas que só acolhiam pessoas com boas condições financeiras, encontrou eco nos sonhos do pároco de Sérignac-Péboudou, Abbé Granereau, também descontente com a situação rural do país. Apoiado pela igreja, em 1935 o padre Granereau consolidou a Pedagogia da Alternância na França. Nesse modelo, os alunos passam uma semana na escola e uma em casa.

No Espírito Santo da década de 1960, altamente dependente da monocultura do café, a ordem era erradicar os cafezais. Sem renda e sem ter como sustentar suas famílias no campo, os produtores rurais começaram a vender suas terras e a se mudar para a cidade. Recém-chegado da Itália, o padre Humberto Pietrogrande, parceiro da Pastoral da Terra e dos movimentos eclesiais de base, com a ajuda da comunidade, fundou em 1969, em Anchieta, a Escola Família Agrícola de Olivânia (EFA), primeira escola agrícola da América Latina. Uma alternativa para os jovens não abandonarem a terra.

“O Espírito Santo vivia um êxodo rural e o padre Humberto constatou o desânimo dos produtores, causado pela falta de políticas públicas que atendessem os trabalhadores do campo. Foi a partir dessa realidade que surgiu, com o apoio da comunidade, o Movimento de Educação Promocional do Espírito Santo (Mepes)”, conta João Martins, um dos fundadores da EFA.

A partir dos bons resultados dessa primeira iniciativa de educação do campo, a proposta foi bem aceita e valorizada pelas famílias e as EFAs se expandiram.

Edson Canchilheri, diretor da Escola Família Agrícola Belo Monte, em Mimoso do Sul, fala da importância da escola para a comunidade rural.

“A escola foi fundada em 2008 e, de lá para cá, tem sido um farol, um ponto de luz, no que diz respeito à educação do campo, agricultura familiar, agroecologia, associativismo, vertentes trabalhadas juntamente com outras organizações, principalmente de agricultores familiares. A escola já formou mais de 280 técnicos e técnicas em agropecuária”, salienta Canchilheri.

O pontapé inicial para a vinda das EFAs para a região Norte, assim como no Sul, também tem suas raízes na realidade da comunidade. Motivados pela falta de incentivo e recursos, expansão da cultura do eucalipto, e invasões de terras, os pequenos produtores estavam, pouco a pouco, vendendo suas propriedades para a empresa de celulose abaixo do preço e se mudando para as cidades.

Em busca de alternativas para diminuir o êxodo rural, um grupo de produtores ligados à Diocese de São Mateus, liderados pelo padre Aldo Luchetta, visitaram as EFAs de Anchieta, Alfredo Chaves e Rio Novo do Sul, e voltaram entusiasmados com o que viram. A Escola Família Agrícola do quilômetro 41, primeira do Norte do Estado, foi inaugurada, mesmo sem que toda a construção estivesse concluída, em abril de 1972.

Escola Família Agrícola de Nestor Gomes, região dos quilômetros em São Mateus. Foto: reprodução Facebook

Nesta visita conseguiram perceber que esta era a ‘luz’ que faltava para a nossa região. O grupo deu início a uma conscientização sobre a importância e a necessidade de se implantar a EFA em São Mateus. A ideia foi assumida pelas Comunidades Eclesiais de Base, que deram início às mobilizações e campanhas para comprar o terreno. Mas valeu a pena lutar pela Escola em nossa região, pois nela se desenvolve um trabalho que valoriza e assume a identidade agrícola com os jovens agricultores e se acredita que é na agricultura que ainda podemos depositar confiança de dias melhores e qualidade de vida”, relata Neuza Barcelos Belucio, ex-aluna e atual diretora da escola.

O cearense Francisco José de Sousa Rodrigues fazia parte da Pastoral da Juventude, e veio ao Espírito Santo fazer um curso de formação de monitores, no centro de formação do Mepes, e ajudar a fundar a instituição no Crato, sua cidade, mas decidiu ficar em terras capixabas.

“O Espírito Santo se tornou uma referência para o restante do Brasil. Nos anos 1980 e 1990, os estados que queriam criar suas escolas famílias viam aprender o modelo que era sucesso por aqui e, de volta as suas cidades, fundaram as EFAs em seus municípios”, conta o monitor, que atualmente atua na Escola Família Agrícola de Boa Esperança.

Desde 1988, Francisco é monitor no Norte do Estado, onde acompanhou de perto o crescimento do número de escolas, bem como o desenvolvimento econômico e social da região dos quilômetros, em São Mateus, beneficiado pela unidade de ensino.

Acredito que sem o trabalho que a escola fez junto com as Comunidades Eclesiais de Base, nesse período do seu surgimento, nas décadas de 1970 e 1980, a região seria uma grande monocultura de eucalipto. Hoje é uma região rica, constituída, principalmente, de pequenos e médios agricultores que atuam na agricultura familiar”, destaca.

Em paralelo ao surgimento das escolas, a região Norte vive também um período de luta pela terra. Surgem nessa época os primeiros assentamentos e, segundo Francisco, a Pedagogia da Alternância foi muito importante para o desenvolvimento dos assentamentos, uma vez que praticamente todos os filhos dos assentados estudaram nessas escolas.

A Pedagogia da Alternância, própria dessas escolas, desenvolve nas pessoas, até hoje, a consciência da realidade. Ela tem essa capacidade de fazer as pessoas refletirem.  Desenvolve o sentimento de pertencimento, a consciência e a perspectiva, dos jovens do campo de projetar um futuro diferente”, explica.

Foto: arquivo pessoal

Alieltom Boldrini (22) mora na comunidade Terra Alta- Bom Parto, interior de Linhares, mas estudou na Escola Família Agrícola de Marilândia, no Noroeste do Estado. Filho de pequenos produtores, Alieltom nunca pensou em se mudar para a cidade, mas também não pensava em seguir os passos do pai no cultivo da terra. Queria trabalhar com máquinas pesadas.

As experiências vividas na escola agrícola, no entanto, despertaram uma paixão ainda maior pela roça e o jovem resolveu deixar as máquinas de lado e dar seguimento ao que o pai começou. Há dois anos Alieltom investiu em um viveiro de mudas de café. O projeto começou com 20 mil mudas, atualmente tem 80 mil e ele já pretende colocar mais 50 mil.

A escola incentiva muito a gente a dar continuidade aos trabalhos na roça. Sem o estímulo da escola, de repente eu nem teria a iniciativa de montar o viveiro, minha principal fonte de renda hoje. O que aprendi na escola, nos estágios, atividades, cálculos de custo, e grande parte do que estudei, estou aplicando no viveiro”, conta Alieltom, que se formou em técnico agropecuária na EFA de Marilândia.

Panorama atual do Mepes

18 EFAs

2.477 alunos no final de 2023

Quase 100% oriundos do meio rural

36% dos alunos são de famílias de pequenos proprietários rurais

60 municípios do ES atendidos, dois da BA e dois do RJ

Oferece: anos finais do Ensino fundamental, Ensino Médio e educação profissional técnico em agropecuária.

Em busca do bem comum no campo

Foto: arquivo pessoal

A prática do cultivo de produtos agroecológicos e sua comercialização ganharam força em vários municípios das regiões Norte e Noroeste do Espírito Santo, a partir dos cursos oferecidos nas comunidades católicas, para impulsionar sua disseminação. Em Nova Venécia, município que se destaca no cultivo de agroecológicos, e Jaguaré, as Associações Veneciana de Agroecologia Universo Orgânico e “Pão da Terra”: Associação dos Agricultores Familiares e Produtores Agroecológicos de Jaguaré, respectivamente, são frutos desse incentivo.

“Quando o padre Honório chegou aqui, eu já trabalhava com orgânico, mas muitas famílias começaram o cultivo incentivadas por ele. Ele fazia os cursos para ensinar e falar da importância de se plantar sem os agrotóxicos. A ajuda dele foi muito importante para a gente comercializar nossos produtos. A nossa associação é fruto do trabalho dele. A espiritualidade, às vezes, fica só na oração, e não na prática. Ele fez diferente, tinha o propósito de fazer uma agricultura limpa e sustentável e incentivou os produtores para isso”, conta Primo Dalmásio, um dos pioneiros na produção agroecológica em Nova Venécia e vice-presidente da associação.

Adepto não só da produção livre de agrotóxicos, mas também do associativismo e da diversificação de culturas, a passagem do padre por Mantenópolis apoiou a criação da Associação de Pequenos Produtores Rurais do Córrego São José 2 e ajudou produtores como o Osair Moreira Cabral (68) a abandonar a monocultura e passar a cultivar, além do café, uva, feijão, arroz, de maneira agroecológica. Osair também produz cerca de 500 litros de vinho por ano.

“Importante os ensinamentos que ele trouxe para o nosso município sobre a agroecologia. Para mim deu certo, cortei o uso do veneno. Hoje consigo enxergar a importância do bem-estar da minha família e de quem compra meus produtos. É um caminho sem volta”, salienta.

Ao longo dos 40 anos de sacerdócio, padre Honório sempre se dividiu entre as obrigações sacerdotais e o trabalho de mobilização e autoestima dos agricultores.

Doação de mudas para Associação de Pequenos Produtores Rurais do Córrego São José 2, em Mantenópolis. Foto: arquivo pessoal

É missão da igreja cuidar não apenas da espiritualidade das pessoas, o cuidar do rebanho não é apenas com orações. É missão do padre ensinar, despertar nos agricultores o desejo de reconhecer a agricultura como espaço que dá para ter vida digna, produzir alimentos saudáveis”, explica o sacerdote.

O religioso continua: “Eu, como padre, a primeira coisa que me motiva neste trabalho é ver as famílias rurais deixando o campo para subempregos na cidade. É preciso trabalhar a autoestima dessas pessoas, fazer chegar as políticas públicas na casa delas. É preciso projetos inovadores para que as famílias fiquem no campo se desejarem, tendo alegria, renda e qualidade de vida. Quando vejo uma família do campo feliz realizada com suas roças, eu também fico feliz”.

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