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O solo fértil dos donos da terra

Agricultores familiares assentados do movimento sem terra narram suas trajetórias inspiradoras

por Leandro Fidelis

em 30/11/2023 às 0h07

9 min de leitura

O solo fértil  dos donos da terra

Foto: divulgação

*Matéria publicada originalmente em 21/03/2022

Joselma Maria Pereira se apaixonou pela agricultura vendo o sogro extrair comida da terra. Todos os dias, o camponês colhia aipim, abóbora, cana, maxixe, quiabo e milho na lavoura branca da família. Alguns alimentos nem faziam parte da dieta da pernambucana, que viveu na cidade até 1996, ano em que se mudou para a zona rural do Espírito Santo.

O aprendizado com o pai do marido se tornou a principal atividade de Joselma. No Assentamento Vale da Esperança, vinculado ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em Santa Teresa, na região Centro-Serrana, ela, o marido e os filhos produzem café conilon, pimenta-do-reino, além de verduras e legumes para programas de alimentação escolar. “Eu me apaixonei pela agricultura e desejava um pedaço de terra. Junto com essa conquista, brigamos por outras, como moradia digna. Para quem já morou em barraco de lona, nossa casa de alvenaria é um palácio”, diz Joselma.

Joselma Maria Pereira- Camponesa assentada e militante do MST Foto: divulgação

Mais ao norte, encontramos Merces Gomes Pereira, no Assentamento Nova Vitória (Pinheiros), criado pela Secretaria de Estado da Agricultura (Seag) em 1986. A agricultora, que vende seus produtos na feira, todo sábado, já formou uma filha em Medicina e é bastante atuante no grupo de 32 famílias. Situado na localidade de Cremasco, o assentamento começou a partir das mobilizações do Movimento Sem Terra (MST) por educação, crédito, entre outros, e contou com o apoio da Igreja Católica.

A história das agricultoras são exemplos de superação de pessoas sem direito à herança e não proprietárias de imóveis beneficiadas pela reforma agrária no Espírito Santo. Joselma e Merces estão entre os mais de 20 mil camponeses assentados pelos governos estadual e federal no território capixaba. Segundo a superintendência estadual do Incra, só de beneficiários do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA) são 4.000 famílias abrigadas de Norte a Sul. Além de garantirem o próprio sustento, esses agricultores familiares são responsáveis pela produção de toneladas de alimentos que chegam às mesas dos capixabas, muitos doados às famílias carentes da Grande Vitória no período da pandemia.

A luta dos movimentos sociais e os conflitos decorrentes da disputa e ocupação de terras resultaram na criação, pelo governo federal, em 1986, dos primeiros assentamentos do Estado: o Pontal do Judiá (Conceição da Barra) e o Georgina (São Mateus). Ao todo são 63 assentamentos, sendo 42 vinculados ao Incra e 21, à Seag, além de oito acampamentos. Esses conjuntos de unidades agrícolas estão localizados em 31 municípios e distribuídos em cerca de 45,9 mil hectares, o equivalente a 1,5% da área onde estão os estabelecimentos agropecuários no Espírito Santo.

Além disso, existem outros modelos de ocupação não assistidos por uma organização social específica, com terras adquiridas por meio do crédito fundiário e, na maioria das vezes, acompanhados pelos sindicatos dos trabalhadores na agricultura dos municípios.

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“Sou filho de pequeno agricultor que foi para a cidade com discurso de educar os filhos. O agricultor familiar assentado tem que ter, sim, eficiência na produção. Por isso, é importante e urgente a questão da assistência técnica, que deve ser específica para esse grupo. Que o agricultor seja o protagonista, não o subserviente. Os cursos de educação no campo têm ajudado muito nesse sentido de produção com eficiência”. Antonio Locateli- Coordenação Assentamentos Incaper/Geaf/Seag

De acordo com membros da direção estadual do MST, os últimos assentamentos instalados pelo Governo do Estado datam de 1991, enquanto os vinculados ao Incra, há 12 anos. “Vários fatores interferem na continuidade da luta pela terra, entre eles o avanço do plantio de eucalipto, que elevou o preço dos terrenos, e a falta de vontade política em prol da causa”, destaca Rodrigo Gonçalves, do Acampamento Produtivo Índio Galdino (Aracruz).

O engenheiro agrônomo e superintendente do Incra/ES, Fabrício Fardin, lembra a publicação da portaria nº 1.577, de 29 de setembro de 2021, para criação de um novo assentamento em Nova Venécia. Segundo Fardin, o imóvel foi adquirido por meio de escritura pública de compra e venda por parte do Incra, “sem conflitos, sem invasões, levando paz ao campo. Acredito nessa modalidade de aquisição para acesso à terra como política pública sensata, que não expõe os dois lados interessados a conflitos e processos judiciais, como a desapropriação de terras já proporcionou”.

Em fevereiro deste ano, o Incra propôs um convênio entre a Federação da Agricultura e Pecuária do Espírito Santo (Faes) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar-ES), que prevê a distribuição de títulos de propriedade no Estado. “O Espírito Santo tem uma estatística pujante para entrega de título. Via Senar-ES, por exemplo, só conseguimos prestar assistência técnica para produtores que possuem título de propriedade”, destacou o presidente da Faes, Júlio Rocha.

 

Diversificação

Eliandra Fernandes, a “Lia”- Assistente social e coordenadora nacional do MST no ES. Foto: divulgação

Embora a vocação produtiva do Espírito Santo seja a cafeicultura, nos assentamentos predominam diversas culturas. A depender de fatores socioambientais, como o microclima e o tipo de solo da região onde estão inseridas as áreas de reforma agrária, e a forma de organização dos assentados. Nas 71 áreas, prevalece o cultivo de mandioca para subsistência e comercialização do excedente.

A diversificação fica por conta da pecuária de leite ou de corte, da pimenta-do-reino, cacau, seringueira, feijão e milho. Os produtos são comercializados por venda direta, feiras livres ou entrega para clientes regulares, como agroindústrias, restaurantes ou cooperativas.

Muitas dessas agroindústrias estão situadas nos próprios assentamentos. É o caso do “Recanto do Tião Vaqueiro”, no Georgina, em São Mateus, onde Eliandra Fernandes, a popular “Lia”, e família produzem geleias e licores artesanais. A matéria-prima vem do vasto pomar iniciado pelo pai dela, o conhecido “Tião Vaqueiro”, que dá nome ao empreendimento e morreu há quatro anos.

Por mês, são produzidas de 120 a 130 unidades de geleia de cupuaçu, cupuaçu com tangerina, laranja, pitaya, maracujá, maracujá com manga, com pimenta ou com castanha do pará e as tradicionais de morango e frutas vermelhas- estas não disponíveis no pomar precisam ser compradas fora para a produção do doce.

Antes da pandemia, as vendas eram realizadas nas feiras da reforma agrária em Vitória, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo, além das feiras dos municípios da região e na camponesa da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) em São Mateus. Atualmente, o comércio das geleias e licores acontece por meio das redes sociais e de entregas da Cesta da Reforma Agrária, na Grande Vitória, sempre conforme as encomendas e a disponibilidade de Lia e do marido, Adenilson.

 

Gênero

É porque o casal só se dedica à agroindústria nas horas vagas. Formada em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) por meio do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), Lia assumiu a coordenação nacional do MST no Espírito Santo em 2019 e está concluindo licenciatura em Educação no Campo pela Ufes, enquanto Adenilson é professor e atua no Movimento. “Cumprir a tarefa do MST me toma muito tempo. A linha política do Movimento propõe um homem e uma mulher representando cada Estado. A participação das mulheres no espaço político ganhou força a partir de 2005 e deu um salto de qualidade ao MST”, afirma a militante.

E nessa questão de gênero, Eliandra Fernandes é taxativa. Para ela, além de participarem ativamente de todo o processo de organização de acampamentos e assentamentos dos Sem Terra e também na educação das crianças, as mulheres mantêm jornada tripla de trabalho: cuidam dos serviços domésticos, trabalham na roça e ainda fazem “bico” para garantir a manutenção da casa. Por essa razão, Lia questiona o atual perfil feminino na agricultura. “Quem disse que as mulheres querem plantar pimenta e café? Às vezes, elas seguem a vontade do homem de priorizar o que gera mais renda, enquanto o perfil delas é o do cuidado”.

Segundo Lia, as mulheres têm mais noção da produção de quintal: horta, pomar e criações de pequenos portes. “É delas o anseio de ter poço de peixe, lavoura de milho ou feijão e, o melhor, a participação mais ativa como ‘guardiãs das sementes’, pois estão mais sintonizadas com agroecologia, meio ambiente e alimentação mais saudável”, define.

 

Leite

No caso da produção leiteira, os assentados mantêm parceria com laticínios e cooperativas, promovendo um ambiente de negócios diferenciado. Josimar de Souza e Karina Louback demonstram isso. O casal vive no Assentamento Celestina, em Nova Venécia, e apostou na produção de leite em virtude da experiência do pai dele na atividade.

Para o pecuarista, a parceria com a Coopeavi ajudou muito os produtores locais. “Principalmente em questões como assistência técnica, acompanhamento e melhoria dos índices que medem a qualidade do leite e cessão do resfriador para armazenamento e conservação do produto até ser levado à indústria.” Satisfeito, destaca que fora do assentamento não conseguiria renda similar à que tem hoje com a produção de café, leite e a venda de bezerros e vacas para renovação do rebanho.

Apesar da leitura geral, o Incra/ES e a Seag não possuem uma compilação de dados segura sobre a produção agropecuária nos assentamentos. “No entanto, é possível afirmar que nos municípios cuja base de cultivo seja café e pimenta-do-reino, as famílias assentadas contribuem significativamente nas regiões produtoras”, destaca o superintendente do Incra/ES, Fabrício Fardin.

Fabrício Fardin, superintendente do Incra/ES. Foto: reprodução

O coordenador de Assentamentos do Governo do Estado (Incaper/Geaf/Seag), Antonio Locateli, afirmou que os dados sobre a produção estão sendo revisados por conta de demandas pontuais, a exemplo da construção de represas. “Sem reserva de água, é difícil planejar produção agrícola”, diz.

O desenvolvimento do comércio em localidades próximas aos assentamentos é um bom exemplo da contribuição dessas comunidades. A localidade de Nestor Gomes (São Mateus), popularmente conhecida como “Km 41”, é vizinha de pelo menos seis assentamentos, cujos agricultores movimentam a economia regional.

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